Desalinho [2009]Ficção

Which Witch?

Lembro-me como se fosse hoje. Era Fevereiro, o termómetro apontava sete graus negativos, e estava um nevoeiro como nunca tinha visto. Contudo, para um Fevereiro Norueguês, este estava a presentear-me com brandas noites. Trabalhava numa Comunidade Terapêutica, ajudando pessoas a libertar-se da prisão que é a droga. Vivia com eles, na mesma instituição, e tinha o hábito de dar uma corrida por dia.

Mas nesse dia atrasei-me. Atrasei-me e não pude correr à hora do costume. Veio o jantar, e duas horas esperei, para a comida assentar. Entretia-me à procura de emprego, viajava de site em site, até ver a hora de ir correr chegar. Porém, quando chegou essa hora, o sol tinha-se já posto. Vivendo tão no meio de nada como vivia, via o meu percurso habitual de corrida completamente imerso numa nuvem, sendo a única fonte de luz uma lua cheia, que brilhava lá no alto, ajudando um pouquinho. Decidi ir.

A cada passo, mais me emergia na escuridão. O nevoeiro era tão denso que conseguia apenas ver uns poucos metros à frente, e as ilusões ópticas abundavam. Corria pelo meio dos campos, olhava à volta, pouco via, olhava para a frente, e via uma muito subtil sombra da floresta que atravessaria. Ouvia Sigur Rós, que fazia com que todo aquele ambiente entrasse em conluio com os meus atrevidos pensamentos, e sentia estar a correr dentro dum sonho. Não de tão bom que era, mas por parecer, realmente, um sonho, que conscientemente vivia. Não me belisquei, pois a certeza que era a realidade, existia. Continuava a correr, e mergulhei na floresta digna dum conto dos irmãos Grimm.

Passo ante passo, o coração a bater fortemente, dei uma curva à direita, tentando ter cuidado para não escorregar nas esporádicas poças de gelo que (já não) me surpreendiam. Curva à esquerda, e mais uma ilusão óptica. Lembrei-me da tese que tinha feito sobre alucinações, e tinha a certeza estar a confundir um qualquer estímulo real por outra coisa qualquer. Mas não passava. Nascia no meu peito alguma adrenalina, e o ritmo da corrida abrandava. Sim, parecia-me um caldeirão… em fogo. Ouvia o crepitar da madeira. Não conseguia ver nada mais além de dois metros para cada lado, e algo que me parecia um caldeirão… e ouvia o barulho. Seria possível estar a alucinar, em vez de estar a ter uma ilusão? Parei de correr, e quedei-me uns segundos. Como sabia que não estava a sonhar, tudo me parecia muito estranho. A adrenalina continuava a arder, mas calma. Fechei os olhos durante quatro segundos, voltei a abrir. A adrenalina disparou. Não só continuava a ver o que via, a ouvir o que ouvia, mas via uma sombra diante do caldeirão. Senti-a rodar, e caminhar em direcção a mim. Queria voltar-me e fugir, mas algo em mim não mo permitia, ficando ali, em cima duma dessas poças de gelo, como que hipnotizado. O vulto aproximava-se e percebi ser uma mulher. Saiu de entre as árvores, e estava a um metro de mim. Era muito velha, mas incrivelmente bonita. Estava vestida de preto e tinha um chapéu em bico.

– És uma bruxa? – ouvi-me perguntar, em Português.

– Sou – respondeu. Disse-o em Norueguês, e percebi pela simplicidade do que disse – Tens fome? – perguntou. Senti-me confuso, pois tinha percebido perfeitamente o que perguntara, tinha quase a certeza que o fizera em Norueguês, mas eu não sabia como se dizia fome nesta língua… tentava, na minha mente, repetir, mas apenas Português aparecia. E como tinha percebido a minha pergunta?

– Tenho… até tenho…

– Então anda comigo – ordenou, suavemente. Da mesma maneira, pegou-me na mão, e voltou a pedir-me que fosse consigo. Era tudo demasiado estranho e fora do normal para eu fugir. Estranhamente, sentia-me bem. Dei um pequeno pulo para saltar o pequeno fosso que separava o caminho do mato, e fui com ela. Não sabia se a sua mão estava quente ou fria, mas o que quer que estivesse, estava muito. Ela caminhava, com dificuldade, em direcção ao caldeirão. Curvou-se, afundou as mãos no fogo, não se queixou, e tirou algo que me parecia uma sopa estranha. Não sabia onde a colocara, mas continuou a caminhar. Cada vez mais dentro da floresta, apareceu outro caminho, que atravessámos. O nevoeiro ia-se dissipando, mas de certa forma que me permitia continuar a vê-la, e apenas a ela. A sua casa era velha, muito velha, como as casas das bruxas devem ser. O portão rangeu, naturalmente, ao abrir, e a porta da casa igualmente.

Sentámo-nos na cozinha, velha, muito velha, onde uma lareira acesa nos aguardava. Assim como não sabia onde armazenara a sopa que tirara, não sabia de onde a tirara naquele momento, e como tinha ido parar a uma tigela, que me esperava, a fumegar, em cima da mesa com uma toalha velha aos quadrados. Sentou-se à minha frente.

– Que tens para mim? – perguntou, em Norueguês. Não me assustei.

– Não sei… – respondi, em Português – E tu, que tens para mim?

– Não sei… acho que te posso mostrar como vais morrer… – sugeriu, descansada, antes de enfiar a colher com a sopa na boca.

– És a bruxa do Big Fish? – senti a minha pergunta estúpida, mas tinha que a fazer.

– Não, filho… Isso é só um filme. Quem sabe inspiraram-se em mim… – gracejou – Mas queres saber ou não? – experimentei a sopa que, apesar de não saber de que era, me sabia incrivelmente bem.

– A sopa é de quê?

– Não é de criancinhas, não te preocupes… é de muita coisa… mas estás a fugir à pergunta, filho. Queres saber?

– Posso responder antes de ir embora?

– Quem te disse que vais embora? – mais um gracejo. Tinha sentido de humor, para uma bruxa. Comemos a sopa em silêncio, e perguntei-lhe como se tinha tornado uma bruxa.

– Eu não me tornei uma bruxa… nunca foi a minha profissão de sonho…

– Mas… é uma profissão? – interrompi.

– Estou a brincar, filho. Tenta acompanhar… Como dizia, eu não me tornei uma bruxa. As pessoas é que me foram tornando uma bruxa…

– Como assim?

– Nem sei, filho… Pelo facto de ser diferente de toda a gente desde o momento em que nasci, pelo facto de me dar muito bem sozinha, as pessoas foram-me afastando, e criando estórias acerca de mim. Talvez por acharem que me dava bem sozinha, e que era independente, que não precisava de ninguém…

– E precisavas?

– Na altura precisava, sabes… Quem é que não precisa de ninguém? Na altura precisava. Não era por ser independente que não precisava de ninguém. Mas depois das pessoas te colocarem um rótulo, é muito difícil escapares. Muito mesmo. As pessoas quando te dão um rótulo, agarram-se às crenças que têm… e se fazes algo que vai no contrário do que pensam, como eu fazia, quando tentava falar com alguém, ou ter amigos, elas assustam-se… Chega a uma altura em que deixas de tentar… Claro que nasci com um ou outro talento, mas só depois de me rotularem como bruxa, tive de aceitar, não o que sentia ser, mas o que as pessoas me faziam sentir ser… Se calhar foi aí que me tornei uma bruxa…

– Mas estás a falar comigo! Sou diferente? Porque é que tentaste comigo? – perguntei, intrigado. Cruzei a perna e dei um gole do café, que tanto se bebia por terras escandinavas, e que aparecera misteriosamente na mesa da cozinha.

– Filho… – disse, mexendo o açúcar do seu café, que segundos antes eu não sabia onde estava – Eu estou a falar contigo… para te comer!! – disse, tentando imitar o lobo mau, permitindo-me vislumbrar uma fileira de dentes perfeitamente alinhados…

– Está bem que não estás habituada a ter companhia, mas tens de treinar as tuas piadas… – interrompi, estranhamente descontraído, achando-me o máximo por estar a fazer uma piada dizendo que as suas piadas são más.

– É, talvez tenhas razão… – respondeu – Bem, como dizia… Eu estou a falar contigo, meu querido, porque estás a sonhar!

– Não estou! – respondi, quase chateado. Apercebi-me que a razão pela qual estava chateado, era que não queria que aquilo fosse um sonho.

– Estás sim, lamento. Experimenta beliscar-te… – assim o experimentei, soltando no mesmo instante um leve grito de dor.

– Agora apanhei-te! – ria a bandeiras despregadas – Estás a sonhar, como te disse, mas é claro que sentes dor nos sonhos! – sim, dessa vez tinha-me apanhado.

– Mas existes mesmo?

– Sim, existo. Mas não aqui no sítio para onde te guiei. Queria que me visses neste ambiente porque é o mais fascinante para as bruxas viverem… na verdade vivo num condomínio fechado em Bergen… – viu os meus olhos arregalarem-se, mas a voltarem à posição normal, quando percebi, sem me explicar, que estava a brincar. Percebeu que percebi – Vivo num local parecido com este, mas que não é em Mysen. E decidi falar contigo no teu sonho, porque se me repudiasses, não me sentiria mal com isso, pois… tinha sido só um pesadelo teu. Mas revelaste-te um jovem muito simpático! – corei – Sabes… quando estás habituado a ser repudiado, crias o teu próprio mundo, onde aí tudo é teu e tudo está sob controlo. Porém, quanto mais tempo passa, mais te habituas a ele, e mais medo crias em relação a falar com outras pessoas. E ganhas estranhos hobbies, como eu fiz com a bruxaria. Coisas que te mantenham ocupada e que não te façam pensar na solidão cruel que vai dentro de ti. E habituas-te.

– Mas… as pessoas diziam que eras uma bruxa… tu dizes que não eras… no entanto, estás no meu sonho… isso não é bruxaria?

– Sim, sim, ok, admito… mas é como te digo. Fica difícil demais lutares contra aquilo que dizem que és, e vais perdendo forças, não importa o quão forte sejas, e entregas-te, como disse, não ao que sentes, mas ao que te fazem sentir…

– Mas já pensaste que podes apenas ter tido azar com as pessoas que conheceste?

– Já pensei muitas vezes nisso, mas também já não-pensei nisso outras tantas… quando toda a gente que conheces diz o mesmo… claro que a informação pode simplesmente ter passado de pessoa para pessoa… mas a dada altura cheguei à conclusão que se o ser humano é alguém tão estúpido ao ponto de confiar mais em informações estúpidas e indirectas acerca de outras pessoas… sem sequer lhes dar uma hipótese… então os seres humanos talvez não valham muito a pena conhecer…

         – Mas quiseste conhecer-me… – disse, fazendo girar o Porto que magicamente aparecera na minha mão.

            – Quis conhecer-te, porque tu nunca ouviste de mim. Porque soube de ti, que estavas aqui há pouco tempo, e pensei em experimentar falar com alguém que não conhecesse nada de mim. Pois se fosses daqui, serias exactamente igual, meu querido… – fiquei em silêncio, a pensar. Seria eu, realmente, “igual”? E estaria esta opinião acerca dos seres humanos tão acertada assim? Pensava no quão facilmente corrompível é, de facto, a mente humana. Tantas vezes que nos entregamos a preconceitos, a estereótipos, não querendo saber por nós, mas encostando-nos ao conforto que é ver a informação, por mais estúpida que seja, chegar até nós de mão beijada. Aceitamos então qualquer juízo, quem sabe condenando as pessoas a serem catalogadas com imagens que não são as suas… e todos fazemos isto… e todos criticamos quem faz isto. Que estupidez. De certa forma, criticamo-nos a nós próprios, mas sem coragem de o fazer directamente, preferindo criticar tudo o resto, ignorando o facto de que também nós… nos incluímos nesse resto…

Levanto-me.

            – Eu quero conhecer-te na VIDA real! – ordenei. Ela levantou-se. Estava à minha frente. À nossa volta uma imensidão de gelo. Estávamos no meio dum enorme lago congelado. Sentia a sua pele rejuvenescer lentamente, e via diante de mim alguém que sabia, que tinha a certeza saber quem era, mas a quem a minha mente adormecida não me deixava aceder.

            – Filho, tu não me podes conhecer na VIDA real, porque eu não existo.

         – Como assim? Mas disseste…

         – Pois menti… eu não existo, porque eu sou apenas o materializar que o teu cérebro conseguiu fazer das tuas próprias questões… não reconheceste de lado nenhum o humor foleiro? – ouvi-a dizer, não me acreditando na informação que chegava até mim.

            – Mas… o facto de seres uma bruxa… isso tem algum significado escondido, então? – estava confuso – Eu sinto-me bem com o que penso, ou sinto, não preciso de o esconder num canto escuro no meio da floresta… ou tenho?

         – Isso, filho, é o que tu tens de descobrir!

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