Desalinho [2009]Ficção

Viver

            Vejo o espanto nos olhos da pessoas ao meu redor como o meu motor, aquilo que me dá energia para continuar. É-me difícil, por vezes… tantas vezes… acompanhar as expectativas que deixam em mim, e isso materializa-se numa vontade cruel de dar dois passos e comprar um grama. Incrível como aquilo que funciona como motor também, ao mesmo tempo, tanto nos pode desacelerar…

            Lembro-me da conversa com Niklas, que completou o tratamento quase ao mesmo tempo que eu.

            – Como estás? – perguntou-me ele, algo nervoso. Não sei se nervoso, mas algo me pareceu fora do sítio. Vi os seus olhos azuis a saltitar de ponto em ponto, e senti uma ansiedade no ar. Incrível como a nossa experiência de VIDA nos permite ser tão perspicazes.

            – Estou bem, muito bem, felizmente! – não menti, mas talvez tenha camuflado a verdade um pouco. Certo é que estava, e estou, bem, mas é sempre difícil e moroso estar perfeitamente bem quando se tenta voltar a viver no mundo real, contando com nada senão essa mesma realidade. Por outro lado, não quis partilhar os meus medos ou dúvidas com Niklas. Algo me dizia que não o devia fazer. Tinha medo de aumentar a sua ansiedade que nem sabia se sentia. Era confuso, pois podia estar a ver algo que não existia, mas ainda assim, decidi jogar pelo seguro… – E tu, como estás? – perguntei, com um sorriso.

            – Estou bem, corre tudo perfeitamente, se queres que te diga! – respondeu, convincentemente. Sorri aliviado e senti-me bem com o facto de se encontrar bem… Porém, é justo admitir que o que receava que acontecesse com ele com a minha anterior resposta aconteceu, de certa forma, comigo, com a sua. A sua segurança fez-me sentir débil, que algo não vai bem comigo, apesar de me manter limpo. As perguntas dentro de mim abundarão, eu sei, mas o facto de o saber não torna tudo, subitamente, mais fácil…

Sento-me no sofá, vejo as pequenas nuvens provenientes do chá, que arrefece, e penso… Como fiel inimigo que é o pensamento, sempre atrevido, leva-me para sítios que não quero visitar, deixa-me com vontades que não quero ter…

Sei que não o vou fazer, mas, não sei porquê, quero imaginar que sim. Vejo-me a sair, olhar à volta para ter a certeza que não sou seguido, chegar à estação central, e apenas pedir meio grama a Magnus. Não preciso de dizer mais nada. Não preciso de lhe dizer que tipo de droga quero, não preciso de lhe dizer para não me enganar, não preciso de mais nada senão a mera frase e um par de notas… Vejo-me a sentir a adrenalina expectante, pelo que se avizinha a um par de minutos, nascer dentro de mim, proporcionando-me um prazer quase tão gratificante como o efeito da droga propriamente dito. Entro na estação, deixo cinco coroas na máquina, e vejo as portas do quarto-de-banho a abrirem-se. Vejo-me a pensar no quanto quero usufruir o momento, e volto para o exterior, onde fumo um cigarro, para que tudo esteja como deve estar, e para poder ficar no quarto-de-banho o tempo que me apetecer. Vejo-me a voltar a entrar, a ignorar a cara que o porteiro faz, fechar a porta, arregaçar as mangas. Tiro o cinto, aperto-o no braço, até ao ponto em que dói e começa a ficar roxo. Pouso os óculos no chão, num sítio que não me faça, daí a uns minutos com o equilíbrio a menos de cem por cento, os pisar. Tiro a agulha do invólucro, faço a sopa, e vejo-me a entrar naquele pico que me deixa num outro lugar, num outro lugar onde… tudo não é melhor, mas tudo não é o que é aqui. Aquele lugar que dura apenas um determinado período de tempo. Vejo-me a encostar-me para trás e a entrar em prazer indescritível. Vejo o tempo passar, e vejo-me sair do quarto-de-banho. A cara do porteiro… não a consigo ignorar… vejo-me a pensar no quão filho da puta que ele é, e apetece-me matá-lo, tivesse eu a energia para tal. Saio, vejo o sorriso de Magnus e apetece-me atirá-lo para a frente do metro, por ter agitado diante do meu nariz o produto! Mas então?… Vejo-me a pensar nos últimos dois anos… na última vez que consumi, uma semana antes de ir para a desintoxicação, um mês e qualquer coisa antes de ir para a Comunidade Terapêutica. Vejo a cara dos meus colegas de recuperação, dos que tiveram sucesso e dos que não tiveram, e vejo os seus olhares de desilusão, que competem com o meu inexpressivo, em completo desalinho com a miséria e vontade de desaparecer que vai dentro de mim. Estupidamente, vejo-me a querer consumir, comprar mais, apenas para que não sinta esta vergonha que se abate sobre mim. Vejo-me a ligar aos meus pais, perguntar como vão as coisas, e dizer que gosto deles… apenas numa tentativa completamente frustrada de me mostrar que sou um bom filho, que me preocupo, e que nada muda apenas com um consumo. Vejo-me a, antes de ir para casa, comprar uma garrafa de vodka, que sei que vai acabar nessa mesma noite. Vejo-me a pensar que não tem mal algum, pois é o que toda a gente faz de vez em quando, beber um copo… vejo os dias passar e não sei se me vejo no dia seguinte a ir outra vez ter com Magnus, se a beber uma garrafa de vodka todos os dias, se a ter uma overdose, se a me suicidar mais tarde, se a entrar em outro tratamento onde terei, mais uma vez, de conviver com os erros que cometi e nunca deveria ter cometido… quando tudo estava na minha mão, quando não podia já culpar a minha má infância, os meus momentos difíceis… consegui falhar de novo… vejo o peso desse falhanço ser demasiado pesado para ter de o enfrentar todos os dias, e vejo-me a desaparecer, um dia, do tratamento, acabando a dormir, completamente pedrado, num passeio de Oslo. Vejo-me a acordar e não conseguir lidar com a cara das pessoas que passam que, não conseguindo mentir, me mostram o lixo em que estou… vejo tudo isto e muito mais, num ciclo vicioso de falsas razões, pretextos e antecedentes que acabam por ser consequentes, consequentes que antecedentes acabam por ser, tudo num circulo interminável que me leva à morte, destruição… ver a minha VIDA passar ao meu lado sem que eu faça algo…

            Dou um gole no chá preto, e sinto a vontade de viver isso tudo. Penso na razão por que o sinto, e não consigo, como nunca consegui, encontrá-la. Apesar de tudo, penso na maneira como aprendi a viver com esta grande questão e escolho… viver…

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