FilosóficoReflexão

A Gente Vai Continuar

OUVINDO ISTO

Tenho pena que toda a gente vá morrer, um dia. Não pedimos para nascer, nem para morrer, e somos obrigados às duas. Atiram-nos para aqui e isto é bom. Mas essa sombra, que por vezes tolda o caminho, está sempre ali à frente, ali ao lado, lá atrás. A sombra está ao redor de tudo e, por vezes, entra dentro de mim. A luz que cá tenho não se esvai, mas é a labareda de um isqueiro num concerto num dia de Vento. É um ambíguo poder, esta sombra, pois permite que se viva mais fazendo com que se viva menos. Faz parte de mim desde que sei quem sou, e não sei se quero que vá, se quero que fique.

Mas que poder tenho, afinal? Ela tem mais poder sobre mim e eu não posso, simplesmente, decidir se a sua companhia é agradável, se indesejada. Habituo-me ao que sinto, ao que penso, e talvez seja demasiado feito de mim mesmo, colando-me a estes conceitos como se me fossem e eu desaparecesse sem eles.

Neste momento, estou triste. Estou bem com isso, mas só oficialmente. Faço batota nas minhas ideias só porque sei que, se não sou só os meus sentimentos, não sou só esta tristeza. Não conseguia dormir e desci, sentando-me à mesa com palavras nas mãos e A Gente Vai Continuar nos ouvidos. “O sistema é antigo e não poupa ninguém”, diz-me Palma, como que confirmando que é a escuridão que nos espera a todos. Mas “enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar.” E somos essa estrada. Cada pequena pedrinha que faz o alcatrão é uma memória, uma ideia, um desejo… um sentimento. Percorremos a estrada, mas é como se, nas palavras de Pessoa, fôssemos viajantes e estrada. Como um planeta no Universo faz uma parte dele, como um corpo de uma pessoa faz parte de tudo, também nós temos, e somos, a VIDA. Trazemos esse conceito como se fosse independente de nós, como se olhássemos para o nosso próprio nome escrito numa folha e aquilo não nos representasse, mas é um conceito que criámos dentro dele mesmo, por isso não seremos ele também?

Eu sou VIDA, e serei sempre VIDA, e quando já não o for, é porque já não sou, sequer. Mas, por ora, sou feito de movimento e tristeza, e alegria e vontades diversas, “fazer isto”, “fazer aquilo”, “ser isto”, “ser aquilo.” Além de VIDA, não sei o que serei, que tipo de material ou de cor a minha estrada vai assumir. Mas enquanto ela houver, a gente vai continuar.

2.52, 3ª, 23 Dezembro 2020

São João da Madeira, Portugal

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