Desalinho [2009]Ficção

Banda Sonora

O cenário: Ele, sozinho, algures no fim do mundo, no meio do seu quarto. Uma luz dum candeeiro despido do seu abat-jour ilumina o pouco que há para iluminar. Um pedaço de pessoa, apenas em boxers sentado no chão; um par de almas mortas estendidas dentro de si; um pedaço de terreno ao redor povoado de beatas de cigarro. Ela entra.

            – Pago agora ou pago depois? – ele pergunta, olhando de baixo para cima. Está sentado no chão com o seu computador no colo. Ouve This World, Zero 7, em repetição, pela enésima vez. A puta olha, de cima para baixo, e cospe:

            – Pagas quando quiseres, desde que pagues…

         – Pago agora. Não me quero arrepender no final e mandar-te pelo caralho sem o dinheiro… Podes ficar com o troco… – sugere, ao entregar uma engelhada nota de 50 euros.

            – Tu é que sabes… Não te conheço, mas ‘tás com um aspecto de merda… – diz a puta, vendo a sua cara amarelada e as olheiras que emprestam ao seu olhar um aspecto cavernoso. Todo ele é merda – E cheira mal para caralho aqui!

         – Primeiro… – começa, falando devagar para ser entendido. O álcool trapaceia, não só a sua visão, que não lhe permite averiguar a beleza da puta, como a sua voz, e a cadência das suas palavras, que escorregam melosamente pela sua língua com sabor a tabaco – Não vais dizer asneiras… E depois, eu não te pago para me dizeres como estou, vê se entendes isso…

         Ela emite um sinal, sem falar, que lhe diz que percebe, enquanto passeia pelo quarto. Com cuidado, passa por cima de si, já que as suas pernas estendidas encostadas ao armário bloqueiam a passagem, e ele vê a sua bolsa de pele falsa balançar na sua frente, e mais tarde aterrar numa cadeira.

            – Vais vestir aquelas roupas… E pôr aquele perfume… – ele ordena, apontando com o amarelado dedo para o canto, onde impecavelmente dobradas a puta vê uma saia branca e uma blusa vermelha, coroadas por uma embalagem de perfume cuja marca não reconhece. “Saiu-me um estranho…”, ela pensa, ao começar a despir-se. Ele não a vê, tampouco olha para ela… Eleva um pouco a sua cabeça, como se no tecto algo procurasse, mas os seus olhos permanecem fechados. Tenta sentir a música que ouve, e tacteia, ainda com a visão desaparecida, a garrafa de rum deitada no frio chão a seu lado. A puta, perante o que chega aos seus sentidos, sente algum medo nascer de si, e pensa duas vezes se fará o pretendido. “Fodido como ele está, nunca me conseguia fazer mal…”, pensa, descansada.

            – E agora? – pergunta, envergando as vestes que noutra altura outra pele vestiram. Ele abre os olhos, olha para si, e ela percebe um par de lágrimas querendo sair. Ele afasta o computador do colo, faz os boxers deslizar até aos joelhos apenas.

            – Agora sentas-te em mim. Puseste o perfume?

         – Pus – e senta-se. Ele permanece imóvel, pelo que ela vai fazendo o trabalho, sentido entrar e sair dentro de si, sem qualquer protecção. Ora ele a olha fixamente, duma forma incomodativa, ora fecha os olhos, e sente com os dedos o delicado tecido da sua roupa.

            – Não… – ele diz baixinho.

            – Não o quê? Queres que pare? – ela pergunta, quase preocupada. Sem saber como nem porquê, sente em si nascer um sentimento de pena e empatia por ele. Porém, ele abre os olhos furiosos e grita…

            – Tu não és metade, um terço dela! Quem é que pensas que és? – empurra-a, violentamente, para a sua esquerda. Ela rebola e sente a sua cabeça embater na mesinha que a esperava no canto. Ele fica no mesmo sítio.

            – Que caralho! Que é que ‘tás a fazer filho da puta?

         – Eu disse para não dizeres asneiras! – ele cospe, desta feita literalmente, na sua cara. Ela continua no chão, e sente a sua saliva quente e mal cheirosa deslizar pelo seu rosto. Levanta-se abruptamente e prepara-se para abandonar o quarto. Ele levanta-se também e agarra-a, começando a despi-la, rasgando a roupa e partes da sua pele.

            – Onde é que ias com a roupa dela, hã? – ele grita, em pé, com os boxers nos calcanhares, os olhos carregados de sangue, lágrimas. Ela grita, enquanto ele a deixa completamente nua e a empurra porta fora, com um pontapé, deixando-a apenas com a sua bolsa, completamente nua.

            A música continua a tocar, e ele chora, sem soluçar. Não quer chorar, não quer pensar no passado, mas a certeza de ter tido algo que nunca mais se terá tira qualquer realidade ao discernimento, qualquer discernimento da realidade… A puta não era metade dela, um terço, um milésimo, assim como ninguém o será, nunca mais… Alguém pontapeia a porta. Ele não sabe quanto tempo passou, mas a música terá tocado mais umas vinte vezes… Gritam do outro lado e ele distingue uma voz masculina agressiva e a voz da puta… “Estou fodido…”, ele não pensa… Levanta-se e sabe que a única maneira é fugir pela janela. A porta ainda aguenta, mas por pouco tempo mais o fará. Ouve os socos na madeira estranha ecoarem na sua mente, fazendo sua cabeça latejar. Levanta-se novamente, sobe os boxers, caminha até à sua janela. Abre-a. A porta está quase a ceder. É a única maneira.

            Sem se equivocar, salta pela janela, e aterra alguns metros abaixo, seis andares depois.

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