Estórias em Vão [2007]Ficção

Velhinho

Hoje está friozito… Mesmo assim, quero ir ao jardim, acho que ela vai estar lá… Visto o meu casaco, luvas, protecções para as orelhas, gorro e cachecol, pego na bengala e vou. Demoro mais de meia hora a percorrer a curta distância entre a minha casa e o jardim, onde pe­quenas crianças, agasalhadas tanto quanto podem, brincam felizes.

Sento-me no banco de madeira verde e tiro o saco de pão ralado com cuidado para ninguém ver. Tenho vergonha de o fazer, da ma­neira como as pessoas olham para mim, como um velho senil, mas adoro atirar mãos cheias de pão para o chão e ver as pombas, felizes e vorazes, devorar tudo. Está um dia triste, que me faz ficar também um pouco triste. Pelo menos é o que digo a mim mesmo, que é por causa do dia, quando no fundo sei que é porque ela não deve vir hoje.

Estou eu a pensar na sua ausência quando sou brindado pela sua presença. Ao fundo, caminhando um pouco curvada (ai as cruzes…) vejo-a, no meio das suas amigas de todos os dias. Penso mais uma vez na sua idade. Deve ser mais ou menos da minha idade, oitenta e cinco no máximo. Sinto-me triste, porque queria falar com ela, ser seu amigo, convidá-la para tomar café e falar, falar, falar… Só queria alguém com quem poder falar, conversar, dizer o que penso disto, da­quilo… Alguém que me salvasse um pouco desta solidão que vivo to­dos os dias. Assim sofre um pobre viúvo. Com um contacto raro com os filhos, que foram viver para a outra ponta do país, com poucos amigos – e os melhores já falecidos –, sinto que não pertenço aqui. Queria falar com ela, mas sei como são as senhoras de sua idade.

Apesar de viúva como eu (disse-me o Álvaro), sei que geralmente as senhoras desta idade são muito fiéis à memória de seu marido, achando que estão a cometer terrível pecado em partilhar a sua soli­dão com outro homem.

Na verdade, é só isso que quero fazer. Não quero sexo, não con­seguiria mesmo que quisesse, não quero nada de mal, só gosto da­quela senhora, nem sei bem porquê, gosto dela e as outras são-me indiferentes… Bem, encho-me de coragem, tento afastar da minha cabeça os pensamentos que corriam e levanto-me do banco, com o intento de me dirigir ao banco onde a senhora se sentou. Que tenho a perder? Respeito por mim talvez, caso seja recusado… Não interes­sa agora…

Aproximo-me, faço uma ligeira vénia, tirando o gorro e pergunto à senhora, sabendo que à partida não se surpreenderá muito com a pergunta, já que sabemos da existência um do outro e já trocamos alguns olhares:

– Desculpe, mas conceder-me-ia o prazer de me acompanhar num café nesta manhã? – Neste momento, abre muito os olhos, olha uma ou duas vezes para as senhoras que se sentam a seu lado e dispara, numa voz baixa e lenta, mas cortante:

– Mas o senhor pensa o quê, que sou uma mulher qualquer que vai para um café com alguém que nunca viu na VIDA? Desculpe, mas não tem esse direito! – Totalmente arrependido, faço uma vé­nia, peço perdão e retiro-me. Caminho lentamente, com uma dor no fundo da garganta incrível. Apetece-me chorar, mas digo a mim mesmo que devo ser forte e sigo caminho, com lágrimas batalhando para saltar, e um buraco no lugar do coração.

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