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Porta 19

Deixei ali o meu Kidus há pouco. Quando lhe dei o último abraço senti o estranho embaraço de não querer que as suas lágrimas me tocassem no pescoço. É estúpido recusar aquele último salgado que nos pode trazer apenas um pouco mais de quem não veremos algum tempo. Histórias dela e pancas minhas…

 

Não tive estrica de viagem desta vez. O meu sentimento foi aquela nuvem aborrecida que não troveja nem dissipa. Aqui há dias, depois de fumar, lavava as mãos, levantei o olhar, vi-me, e percebi que ia viajar, que daí a nada estaria no Panamá ou na Guatemala, e novos terrenos me infiltrariam. Aí senti que ia estar longe e percebi plenamente. Mas depois, no dia seguinte, passou. Ficou apenas o racional, aquela ideia de que o meu corpo ia para outro lugar, quando a minha vontade se encontrava dividida.

 

Porque vou?

 

Porque gosto tanto de ir que senti ter de programar ir para depois dar-me tempo para não ir. Houve vislumbre de um pequeno Kidus mas, como a tantas quase-mães no primeiro trimestre, ele, ou ela, não chegou a ser. Há uma ideia de futuro, planos, estórias que nos contamos que queremos viver. E depois há a estória que conto a mim mesmo… que quero ser escritor… que para isso ser preciso de material acerca de que escrever. Que preciso de um livrinho para dar a ponte aos meus leitores de viagem para me acompanharem para a ficção. Estórias que me conto, planos que tenho, ideias que tenho de perceber se funcionam ou não. Opções…

 

Deixei o Kidus, deixei de a ver, por detrás dos senhores de uniforme a ver se alguém tinha bombas ou armas, abeirei-me da escada rolante que descia sem preguiça e senti-me sorrir pela primeira vez. Não desde os últimos tempos… mas como quando na estação de serviço de Elvas, em 2011, me senti sozinho pela primeira vez, ou em Sevilha, em 2014. Não um sorriso de “deixem-me para trás” mas aquele de “vai começando por aqui.”

 

Olhei para cima, vi no placar que tinha a porta 19. Segui para a direita. E, em alguns segundos, voltei para trás várias VIDAS. Descia a escada rolante e, mais ou menos a meio, reparei que, à minha esquerda, havia a porta 14, e 15, e 16, e uma grande fila à espera de um voo da Ryanair. Estreitei os olhos para perceber que, hoje em dia, aquele 14, ou 15, ou 16, ia para Milão… mas aqui há uns tempos ia para Birmingham, ou para Londres, ou para Liverpool. Iam sempre para os mesmos, e o meu destino era sempre o mesmo, mas misturei-os todos, porque usei-os todos. Lembrei-me de mim, ali, naquela fila. Quando era directo a Birmingham o sofrimento era breve, implicava só um táxi ao destino. Mas logo no início da minha estada inglesa cessou e tinha de ir a Stansted, para chegar à meia-noite e tal, para depois apanhar um autocarro para depois apanhar um táxi para chegar a casa do Vangelis às quatro da manhã para depois trabalhar no dia seguinte às três da tarde. Parece péssimo. Salva-se o facto de eu gostar do que fazia, até perceber que gostar não era suficiente.

 

E hoje, olhando para aquela fila, senti desdém. De imediato, tendo esta mania de não ser má-onda, até de mim para mim, reprovei-me por isso. Mas logo me perdoei. Pois eu não julgava qualquer desta pessoas por ali estar. Só me julgava a mim, talvez, por ter estado mais um dia, quição, do que devia.

 

Desci ao mesmo nível, esqueci estas portas à minha esquerda, e esperei que a minha atrasada porta 19 me deixasse partir.

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