Textos

A Escolha do Destino e o Que Veio Antes

Ontem fiz anos. Queria ter escrito ao fim do dia, embalado por tudo o que entrou dentro de mim ao longo do dia, tanto real como apenas sentido, mas o meu corpo afundou-se naquele sofá de couro preto como uma âncora que nunca viu o mar. Foi a primeira vez que passei o meu aniversário fora de Portugal e… revelou-se uma experiência sublime. Como de resto tem sido cada dia até agora nesta viagem.

Esta viagem teve alguns atropelos. Ideias e planos diferentes, por vezes conflituosos e depois o factor climatérico a pesar-me. Há cerca de dois ou três meses entrou firme em mim uma seta com um longo fio que se esticava até às montanhas Pamir, na Ásia Central. Olhei para o meu peito, não estranhando a flecha e peguei no frio que cintilava a perder de vista. Agarrei-o com as duas mãos, dei dois passos na direcção de onde me chamava. Mas senti-o gelar, e partir. Inevitavelmente apareceram-me as questões de “Que tipo de viajante sou se o clima me pára?” mas foram breves. Agradeci a visita mas não lhes dei guarida, pois eu sou o viajante que me apetecer ser e não lhes devo explicações. Sou o viajante que gosta de sofrer quando vale a pena, não só porque sim. As montanhas estarão lá numa altura em que eu não tenha de sofrer à boleia com graus negativos. Pois, sim, iria fazer esta viagem à boleia, e isso dá-nos um pouco de perspectiva em relação às condições a que nos queremos expor. É estúpida esta insegurança que tenho de achar, mesmo agora, a escrever isto, tenho receio de desiludir alguns dos meus seguidores por não ser tão “qualquer coisa” como me imaginavam. É um tipo de insegurança que nem sequer bate à porta, ou então nem o referiria, mas mesmo assim, algo que está lá fora ao frio a pedir asilo. Como se nós devêssemos, alguma vez, ser aquilo que nos esperam ser.

Partido o fio que me levava até à Ásia Central, virei-me para o outro lado e o continente americano acenava-me, ao longe. Quando comentava com amigos viajantes que pensava aventurar-me pelos Estados Unidos, percebi imediatamente que não era um sítio visto como qualquer tipo de destino de eleição. Afinal de contas já sabemos o que são os EUA, certo? Não me parecia ser muito certo, e era por isso que queria ir. Outros diziam que o simples facto de quase metade da população ter votado no Trump os afastava da ideia de sequer lá meter os pés, o que me deixava confuso, pois não seria isso o mesmo que alguém não querer vir ao meu país porque votámos no PS, ou no PSD? Sei que não é bem o mesmo, pois as ideias e atitudes do Trump horripilam-me mais que alguma que já tenha ouvido o PSD dizer e, ao mesmo tempo, há um consenso internacional acerca da sua imbecilidade. Mas, ainda assim, julgar um votante parece-me errado.

E depois veio a ideia do frio, novamente. E depois a ideia de ir de Nova Iorque para Sul, rumo… ao Panamá? Porque não? E depois a ideia de que, para levar esta questão do frio até ao fim, podia inverter o caminho, e começar no Panamá e acabar nos EUA. Quando dei por ela tinha um voo que aterrava em Miami dia 29 de Dezembro e regressava daí dia 30 de Abril. Ia usar Miami só mesmo como ponto de chegada e partida, e não me aventuraria muito por este país. Sabia que se fosse a correr com os quatro meses que tinha corria o risco de ver muito e não ver nada, pelo que decidi gastá-los na América Central e no México. E depois via-se.

No Daqui Ali de África avisei que pudesse haver um Kiduzinho neste mundo quando lessem o meu próximo livro. Quase.

Estávamos em Moçambique, em Fevereiro de 2017. Tinha encontrado uma viagem Lisboa-Maputo-Lisboa por 138 euros e foi demais para recusar. A Graciete saltou logo para dentro deste barquinho, dei um toque ao Sam, amigo meu inglês, ele à sua namorada americana Michaela e éramos quatro. Foi uma viagem de duas semanas, três para mim, pois fiquei mais uma para apresentar o Daqui Ali de África e ir à televisão algumas vezes para o promover mas, nas coisas que aconteceram, bem parecia uma viagem das minhas de um ano em que tudo acontece. Depois de passarmos uns dias em Maputo subimos até Macaneta, daí para Bilene e daí para Chidenguele. Virámos para a areia e aventurámo-nos em direcção ao mar. O jipe, que supostamente teria tração às quatro, deixávamo-nos ficar mal, e de cada vez que aparecia uma poça de água do tamanho de uma pequena piscina agarrávamo-nos uns aos outros em suspense. Quando começou a parecer que, de cada vez que o Sam se atolava, eu atolava-nos duas ou três, tive de passar o volante para mãos inglesas. Passámos a noite em casa de uns senhores a quem tinha pedido guarida. Queria que eles passassem um pouco por aquilo que eu tinha passado em África, aquela beleza da albergaria constante. Não foi bem o mesmo, porque tivemos de dar uns dez euros ao senhor, mas foi bom que chegasse.

Quando acordámos conduzimos por aquelas estradas de areia fina e vegetação a afagar o para-brisas e estacionámos a dez minutos da praia. E quando chegámos aquele areal ele era todo nosso. A maré estava baixa, dava para caminhar longe sempre com a água pelo peito, e as ondas vinham apenas com velocidade suficiente para eu e o Sam nos divertirmos com a pele como prancha, enquanto as raparigas descansavam sentadas na areia dura e molhada. Ficámos ali umas horas e quando nos secávamos o Sam proferiu a nossa sentença até ao dia seguinte: “Acho que perdi as chaves!” Dali ao alcatrão separavam-nos dez quilómetros de areia daquela que se enterra quase até ao tornozelo quando pisamos. Com calma procurámos os bolsos e bolsas todas, e com calma, mas estupidamente, vasculhámos o chão do mar ali mais ou menos naquela zona onde tínhamos andado a rebolar. Voltámos ao jipe, fechado. Eu estava descalço, de calções de banho e t-shirt, mais nada. A única diferença entre mim e o Sam era que ele tinha o seu passaporte, que deixara na bolsa da Michaela.

Naturalmente, não gosto que coisas destas aconteçam, porque é chato todo o trabalho que tem se empreender para resolver, mas confesso que gosto engajar naquele modo de resolução de problemas, vejo-o como um interessante desafio. Assim, a primeira coisa a fazer era espreitar num resort ali ao lado, que parecia por abrir, e talvez descobrir uma boleia para evitar três horas de caminho. Aquele resort era composto por umas quarenta casas enormes de telhado laranja que se misturavam com graça na natureza. Parecia que estavam dispostas aleatoriamente, sem grande organização, e nunca se via mais que três ou quatro de cada vez, tal o tamanho de todo o terreno. Entrei, caminhei um bocado, reparei num branco ao fundo e expliquei-lhe as nossa história. Era um sul-africano que tinha investido naquele resort e agora contava aí passar grande parte do seu tempo. Parecia-me uma ideia excelente.

O resto do pessoal meteu-se na mala e, com seus rostos a deixarem-se lavar pelo ar ameno, arrancámos. Quando consegui ter rede e liguei ao senhor do aluguer de carros e lhe disse o que tinha acontecido ele reagiu como se tivéssemos perdido a chave de propósito só para lhe estragar o dia. Tínhamos de voltar a Maputo para ir buscar a chave suplente… quando ele encontrasse a chave suplente. O sul-africano deixou-nos numa bomba de gasolina e daí consegui boleia para nós os quatro até Xai-Xai, cidade que tornaríamos na nossa base até termos a confirmação de que ele encontrou a chave. Xai-Xai, capital da província de Gaza, parecia-me uma cidade cansada. Ainda se encontrava aquela arquitectura colonial portuguesa mas as cores dos prédios tinham sido vítimas daquele sol constante e de falta de manutenção. À medida que atravessávamos aquelas ruas à procura de um restaurante, reparei em nós. As miúdas normal, e eu e o Sam descalços. E reparei no quão fácil seria alguém pensar que “Estes turistas, que têm dinheiro para comprar chinelos andam aqui a meter nojo descalços para quem não tem dinheiro.” É assim que fazemos, tanta vez. Almoçámos, procurei na internet e encontrei um sítio para ficarmos. Só no final do dia é que o senhor ligou a dizer que tinha encontrado a chave.

Na qualidade de lusófono, queria ser eu a ir a Maputo buscar a chave, apesar de ter sido o Sam a perdê-la. Mas tinham-me advertido em relação a andar sem passaporte, e como o Sam tinha o dele, lançou-se com a Michaela. Eu e a Graciete ficámos por Xai-Xai, e fomos até à praia. S bares da praia tinham o mesmo nível de fatiga que a própria cidade, e a praia era uma praia sem grande pompa, com algum lixo orgânico mas com uma bom ambiente de miúdos a saltar de um lado para o outro, a correr, a dançar.

Estávamos sentados lado a lado, a tarde já ia a meio, no areal, cada um apoiados na areia com os braços esticados para trás. Estava calor mas tolerável. Olhei para a esquerda… não me lembro ao certo deste pormenor, mas vamos dizer que a Graciete estava de olhos cerrados com a cabeça inclinada para trás, sim, é assim que a vejo. Do seu rosto os meus olhos desceram para o seu peito, para a sua cinta… e reparei.

“Estás sem o penso anti-concepcional.”

“Sim, eu sei” respondeu, abrindo os olhos e olhando para mim. “Esqueci-me de o trazer.”

“E quando voltarmos… vais comprar mais?”

“Não” e sorriu. E sorrimos, pois acabava de me dizer que estava preparada.

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