Desalinho [2009]Ficção

Não Posso Mudar

Banda Sonora

 

A música toca num rádio qualquer. Não podia estar mais em consonância com o meu interior. “Acabou… boa sorte!” – nem tenho tanta a certeza acerca de desejar boa sorte. Mas que acabou, isso podes ter a certeza. Vou ao quarto de banho, lavo a cara, olho para o espelho. “There are so many special people in the world…” – e eu tenho de ficar contigo? Olho melhor. A nódoa negra no sobrolho está a desaparecer lentamente. As pisaduras que me dás são recordações que passam. Por isso mesmo, por passarem, tento fazer com que passem também dentro de mim. Quando vens e me pedes desculpa, o mundo muda. Não consigo negar perante o teu olhar de homem arrependido. O mundo muda, mas… contrariamente ao que penso, ao que quero pensar, as pisaduras que tenho dentro de mim não passam, essas são perenes, e massacram-me o dia-a-dia. Ser a mulher perfeita, fazer tudo perfeito, não falhar, sorrir, ser inteligente, sociável, não beber… nada! Tudo em busca de uma perfeição que sei não existir. Sei… porque mo lembras. Quando chegas a casa nos Sábados à noite, quatro, cinco, seis da manhã, encontras-me a dormir, queres-me, eu não quero, estou a dormir… Tive de afastar um pouco a mesinha de cabeceira, fruto das quantas vezes que já lhe dei com a cabeça quando me empurras da cama, pleno em raiva perante a minha recusa.

Estás no trabalho. É a altura ideal para sair, não encontro o teu olhar que pede perdão e que, não sei porquê, faz-me sempre voltar atrás. A música queria deixar de tocar, mas fui ao computador e deixei-a a tocar vezes sem conta. Sorrio com ironia quando a Vanessa diz que tudo o que me queres dar é demais, é pesado… não dá mais. Espalho na cama as minhas roupas, coloco-as, uma por uma, na minha mala. Tento não pensar em nada. As lágrimas querem sair, a coragem quer desabar, mas não posso fraquejar. Faço a mala.

Não me dou ao trabalho de desligar o computador. Vou à cozinha, escrevo um bilhete. “Desculpa, mas desta vez não há desculpa possível” – arregaço um pouco as mangas da camisola ao escrever, e paro meu olhar nas nódoas negras dos meus braços, que me recordam mais uma vez que sair é a única coisa que posso fazer. Sinto-me tonta, preciso de me sentar. Tiro um copo de água, que bebo lentamente, sentada com a mala aos meus joelhos. Ganho coragem. Posso voltar a trabalhar sem problemas. Posso, não posso? Não sou velha como ele diz sempre… pois não? Não!

Levanto-me. Cada passo é marcado e sentido, sinto-me como os que fazem a última caminhada, em direcção à cadeira eléctrica. É isso que quero, matar esta VIDA, para começar outra de novo, completamente de novo. Nem preciso de encontrar esse alguém especial que há reservado para mim, pelo menos para já.

Abro a porta. Quedo-me à saída. Passam dois vizinhos, que me cumprimentam e olham de soslaio para a mala que aguento na minha mão direita, e estranham a minha posição estática, frente a um futuro diferente. Não vejo os teus olhos, mas sinto-os em mim. Não te vejo à minha frente, mas sinto as tuas correntes. Mais uma vez não, por favor. Quero dar o passo, quero sair… mas não consigo. Choro compulsivamente, fecho a porta, sento-me no chão. Estou sentada com os joelhos dobrados, abraço as pernas. Vou para onde, vou para quem? Não tenho nada nem ninguém além desta prisão de portas abertas. A única forma que me permite sair é fazê-lo sabendo que voltarei. Não consigo. Não consigo nada.

Não é a primeira vez que faço isto…

Levanto-me, desfaço a mala, desligo a música. Rasgo o bilhete, começo a fazer o jantar.

Chegas passado uma hora.

– Olá meu querido!

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