Desalinho [2009]Ficção

Feitos Omnipotentes Geram Ovações

Nunca pensei ser assim tão importante. Cresci na ignorância, vivi na ignorância, até que descobri como ter um impacto, como ser um alguém, ainda que anonimamente, no meio desta massa de gente. Começou por acaso, sinceramente… um pequeno descuido acabou por ser o meu primeiro grande feito. Recordo-me do terror que senti naquele dia. O medo de que me descobrissem, que soubessem que tinha sido eu o causador de toda aquela agitação era aterrador…

Mas…

Agitação… essa palavra continuava a martelar na minha cabeça, num badalo dolorosamente prazeiroso, repetida e insistentemente, como um relógio partido. Essa palavra rapidamente entrou dentro de mim, pegou no meu medo e tornou-o em satisfação, excitação, e acima de tudo orgulho e sentimento de importância. Centenas de pessoas eram mobilizadas por minha causa, milhares de pessoas falavam de mim, e eu sentia-me como nunca me tinha sentido. Tinha descoberto o meu papel no mundo, a minha maneira de chegar às outras pessoas, de as agitar.

Chegando determinadas alturas do ano, parece que nada se fala a não ser no que eu faço, ou já fiz. Noticiários, rádios, jornais, parece que Portugal se afoga no seu próprio aborrecimento e consegue apenas acordar e sentir debruçando-se sob o doce veneno que lhes entrego. O veneno que faz afastar tudo aquilo em que não querem pensar, que as arranca da monotonia de uma VIDA sem altos e baixos, tão especialmente nesta morta, pobre e insignificante vila. Adoro quando, por exemplo, por alguma razão, num ano qualquer, me atraso um par de semanas, ver o vazio nas pessoas. Sento-me no Café Central e bebo um bagaço, ouvindo os populares quase a queixarem-se por não terem nada de que se queixar. É linda, esta hipocrisia e falta de sentido que as pessoas têm… Vejo no seu vazio olhar de quando tudo corre bem o mais irresistível convite…

Elas querem-me, as pessoas… procuram-me. Dizem que me querem matar, mas sei que no fundo me adoram e querem saber quem adorar. Olho-me no espelho ao ouvir as notícias que se propagam e sinto-me incrivelmente modesto por não reivendicar nada do que faço. Fico na sombra (uma metáfora irónica) e prefiro não me vangloriar. Para quê? Nada mais seria o mesmo, tudo perderia a sua especialidade, e as pessoas perderiam a esperança. Se têm esperança em me encontrar, e se realmente for verdade que esta é a última a morrer, porque deveria eu matá-la duma só vez em entregar-me sem luta? O que seria que morreria de seguida, uma vez que eu levasse a esperança?

            Sei que há quem diga que sou doido. Ou melhor, há quem diga que o Fulano Tal é doido, sem saber quem Fulano Tal é. Especialmente porque até me movimento com eles, em busca de mim próprio. Se soubessem que a pessoa que caminha ali ao lado, orientado com o suposto mesmo princípio que eles, tenho a certeza que os queixos de toda a gente batiam no chão, e a admiração que já sentem por mim atingiria a consciência da minha genialidade. Porque claro, o melhor disfarce é o isolamento. E que melhor maneira de me isolar que não no seio de centenas de pessoas aos gritos e choros?

            Nem sempre corre tudo bem. Por vezes há quem tope as coisas a tempo e mande logo tudo… por água abaixo (estou a gostar destas minhas metáforas). Não percebo… quer dizer, até percebo, é o papel deles, o papel que eu lhes atribuo. Sim, porque o grandioso do que faço é que posso tornar qualquer um num herói. Isto parece delirante, eu sei, e às vezes penso nisso, mas não é… vejo-me como uma espécie de enviado, até de mártir, que se sacrifica, fazendo coisas grandiosas, para que outros possam brilhar, não na sombra como eu, mas nos ombros de toda a gente. Quem sabe um dia me mostro, me explico, e aí sim, será o meu dia de glória. Sei que lhes vai custar a perceber, mas assim que perceberem vão perceber o meu sentido, o meu papel neste mundo sedento de algo de que falar.

            Tenho um plano para hoje. Desta vez vai ser em grande. Escolho um local recôndito. Com tudo preparado, basta uma pequena chama, que sedenta beija o convidativo combustível, para o meu mundo se iluminar.

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