Desalinho [2009]Ficção

J U S T I ç a

Quando o vi não consegui acreditar. Era ele. Abri bem os olhos, tentei controlar o meu furacão interior e cravei o meu olhar na sua figura, na esperança de que olhasse também para mim. Não conseguia perceber o que se estava a passar, não conseguia perceber o que estava a sentir. Quando pensava já o ter ultrapassado de vez, senti.

Mas não me quero acelerar…

            Estava a tomar café na Vénus, enquanto esperava umas amigas. Lia, descontraidamente uma revista qualquer, lia sobre os outros, como sempre. Pensava, quase sem pensar, naquilo em que a minha VIDA se tinha tornado… Quatro filhos, trabalho, ler revistas estúpidas, dormir, ver a novela, comer… uma VIDA completamente em desalinho com aquilo que em tempos sonhava. A excitação, essa não a via fazia muito tempo, muito tempo… Acho que foi por isso que, ao ver o Eduardo entrar pastelaria dentro, senti o que senti. Senti como se a última vez que tivesse realmente sentido tivesse sido consigo. O meu marido não despertava em mim o mais ínfimo sentimento fazia muito tempo. Apenas a resignação dum casamento aparentemente feliz, filhos que adorava, dias que queria que passassem.

            Olhou para mim. O seu sedutor sorriso abriu-se, os olhos pareciam brilhar, queria acreditar, e aproximou-se.

         – Adriana! Será possível?

“E será possível que te tenha deixado partir?” – pensei.

Passados os quinze minutos iniciais de conversa circunstancial, vi, através do vidro, uma amiga minha a chegar, com os olhos predadores à procura de um inocente lugar para estacionar. Não queria estragar aquele tão precioso momento e, atrevendo-me a ser espontânea, perguntei se Eduardo não queria ir tomar um café a um outro lado qualquer. Para minha surpresa, aceitou. Consegui fugir a tempo, agradecendo mil vezes ao pesado trânsito conimbricense em hora de ponta.

            Essa tarde teve muitos nomes. Acho que me permiti recuar, voltar aos tempos de estudante, em que vivia essa paixão desmesurada, um amor louco, selvagem, mas que acabou. Parece estúpido, mas não me conseguia lembrar como, ou porquê, tinha acabado.

Claro que, de vez em quando, era chamada à realidade, quando ele insistia em falar do seu casamento, e manifestava a profunda tristeza em não conseguir ter um filho. Quando lhe disse ter quatro, ele disse, na brincadeira, que lhe podia dar um.

            O tempo desdobrou-se em anos vestidos de horas, momentos que julgara esquecidos, sentimentos que perdera bailavam provocadoramente… e o tempo passava. A cada minuto passado, um minuto mais perto de um novo “adeus”. Porém, uma outra surpresa.

            – Que dizes de inventarmos cada um uma desculpa para não jantarmos em casa e irmos beber um copo? Pelos velhos tempos…

         – Estás a falar a sério? Bem… por mim tudo bem, mas nem preciso de desculpa, o meu marido tem uma reunião qualquer, não vem jantar. Tenho só de pedir à minha mãe para olhar pelas crianças enquanto não chego.

 

         Quase não valeria a pena dizer o que se passou de seguida. Realmente fomos beber não um, nem dois, mas copos atrás de copos, “como nos velhos tempos” até que, a determinado momento, estávamos nós sentados numa esquina do English Bar, ele se aproximou.

            – Sabes que eu, de certa forma, nunca te esqueci – atirou, enquanto deixou a sua mão esquerda descansar na minha perna, um pouco acima do joelho. O seu braço direito abraçou-me subtilmente.

            – Sabes que eu, seja de que forma for, nunca te esqueci – respondi. Sentia-me sensual, e sentia que ele sentia o mesmo. Sentir, sentir, só pensava nessa palavra quando com ele. Não queria pensar em nada naquele momento. Não queria pensar que tinha um marido, uma família, responsabilidades, uma rotina desesperante… queria voltar a ser a miúda apaixonada pela VIDA, impulsiva, entregue às emoções. E assim o fiz.

Agarrei-o com o meu olhar, puxei-o, e beijámo-nos. Ele subiu a sua mão direita, agarrou-me gentilmente na face, e respondeu ao meu beijo apaixonadamente. Descolou os lábios dos meus, aproximou-se do ouvido.

            – Astoria?

         – Podia ser a mais bela estória… – respondi, baixinho. Dei um segundo e fi-lo perceber que, na verdade, tinha percebido a sua sugestão – Vamos…

            É-me difícil explicar como amei cada segundo de toda aquela aventura. Sorria ao pensar que o termo “aventura” para “um caso” não podia, nesse particular caso, estar melhor aplicado. Sentia-me realmente, como numa aventura. A adrenalina abundava, o desejo era enorme, o sentimento era ameaçadoramente delicioso.

            Não demorámos muito a chegar ao hotel. Não lhe disse, naturalmente, que não fazia amor há mais de meio ano. E não fazia amor consigo há quase meia VIDA. Talvez por isso tenha sido tão fantástico. Cada momento.

            – Adriana, tenho algo para te dizer – estava deitado por cima de mim, não já dentro de mim. Pensei em mil coisas que me pudesse dizer, ou pedir. O meu coração pensava noutras quantas. Queria dizer que sim. Fosse o que fosse, queria dizer que sim. A sua expressão foi ficando mais carregada, a cada batida do meu coração. Os meus olhos embaciaram-se. Que me aguardaria?… – Eu não fui totalmente sincero contigo… Eu… de certa forma, engendrei o nosso encontro – acho que o pico de alegria que senti quando o ouvi dizer isto foi, esse sim, ainda mais curto que uma batida seja de que coração for. Durante esse milésimo de segundo permiti-me pensar que engendrara o nosso encontro porque tinha saudades minhas, porque queria ver-me, estar comigo. O meu pensamento voltou à realidade mais eventualmente assustadora quando vi que a sua expressão carregada não se alterara.

Quando me relembrou do que tinha dito acerca de não conseguir ter filhos, o meu coração parou. Quando continuou a falar e explicou a sua teoria, do mais cruel, mórbido que já ouvi, a minha respiração parou.

O pedido adivinhava-se a qualquer segundo. Os olhos, que há vários minutos tinham abandonado a condição de embaciados, humedecidos davam a conhecer o que ia dentro de mim, deslizando as lágrimas silenciosas pela minha face. Não sei o que se passou dentro de mim. Nunca imaginara um pedido daquela natureza, pedir algo tão forte, arrasar-me completamente enquanto ser humano. Sentia-me como um pedaço de qualquer coisa, um pedaço de nada, um pedaço… um pedaço de coração despedaçado. O que restava, e isso era o mais estúpido, o que restava do meu coração, batia por Eduardo. Viajei muito rápido, a viagem foi efémere. Numa tarde renasci, vivi a juventude, e num momento envelheci, com a perfeita consciência diante de mim, de que não havia qualquer voltar atrás. As mãos, que frias descansavam nos lençóis, elevaram-se, acariciaram a sua face. Tentei ser mais eu. Tentei ser mais eu em cada poro da minha pele que sentia ainda o seu corpo de encontro ao meu. Disse que sim, lentamente, com a cabeça, enquanto reunia forças para falar.

            – Sim, Eduardo, eu faço isso por ti – a sua expressão não mudou, mas senti, quem sabe erradamente, seus olhos brilhar um pouco mais. Estava dentro da cabeça dele e antevi cada pensamento. A expressão adquiriu uma tonalidade de dúvida – Não precisas de te preocupar com isso. Tudo esteve do teu lado hoje.

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