Desalinho [2009]Ficção

Justiça

Banda Sonora

            “Se quase toda a gente pode ter os que quiser, porque é nós não podemos ter só um? Só um…” – penso. Era o que tínhamos vindo a dizer um ao outro. De início acho que funcionava como uma espécie de desculpa, um tentar convencer-nos a nós próprios que não era algo assim tão errado. Mas, à medida que o tempo foi passando, e o plano evoluindo, comecei mesmo a acreditar, ou melhor, a compreender, e perceber que faz perfeito sentido.

            Quantas vezes tínhamos tentado, quantas frustrações… Parece que foi Deus, o meu Deus sagrado, que tantas vezes me castigou, mas que de repente me deu uma oportunidade. Por coincidência, soubemos que uma pessoa ia ter um. Mal soubemos da gravidez, e após interiorizarmos vezes sem conta a realidade, isto é, que também merecíamos um, começamos a planear tudo. O primeiro passo foi contar aos pais e aos amigos.

            – Pai, consegui, estou grávida! – a alegria de todos parece que foi quase maior do que a nossa até seria, pelo que mais me convenci que estava a fazer o que era certo. A partir daí começamos a disfarçar a barriga, com muito cuidado e progressivamente. Com um pouco de cuidado e esperteza, escapávamo-nos de eventos como idas à praia, piscina, enfim, tudo o que pudesse pôr a descoberto o nosso segredo. Para nosso azar, ou a pessoa que ia ter não tinha querido saber o sexo do bebé, ou nós não o tínhamos conseguido descobrir, pelo que dissemos a toda a gente que preferíamos descobrir na hora. O meu marido, dedicado como sempre foi, por volta do quinto mês já tinha descortinado todos os hábitos daquela numerosa família, bem como as fragilidades e faltas de cuidado na sua casa. Por essa altura tínhamos já quase toda a roupa do bebé, em tons de amarelo, oferecida por todos os familiares e amigos.

Claro que tivemos o cuidado de arriscar o plano com alguém que não conhecêssemos.

            – Estou grávida! – ouvi-a dizer às amigas no café. Não consegui descrever a profunda inveja que senti e sentido de injustiça ao saber que aquela mulher, que aparentemente já tinha quatro filhos, ia ter mais um! Mais um! Remoía constantemente nisso, não conseguia deixar de me sentir como o ser mais negligenciado por Deus! Tinha de partilhar a raiva e ódio desmesurados e sem sentido que sentia, e fi-lo, naturalmente, com o meu marido. A surpresa foi enorme, mas deu lugar à esperança.

            – Não percebes esta oportunidade?! – disse-me. Tinha acabado de lançar uma ideia que me parecia absurda – Tu não percebes? É perfeito, meu amor! Eles têm quatro filhos! Eles se quiserem deitam-se e têm outro passado menos de um ano! E nós? Temos de aceitar esta merda de VIDA, envelhecer sem ter alguém de quem tomar conta? – as ideias começaram a bailar na minha cabeça, mas rapidamente pararam, e começaram a assentar realmente, começando eu a perceber que realmente até fazia sentido, e o que o meu marido dizia não estava tão errado assim. Era simples, fácil, e acima de tudo, era justo.

            – Querida… – disse-me ele um dia, estava eu sentada a tomar um chá, enquanto fazia festas na minha barriga de borracha – Já nasceu! – senti-me tonta. Tive de me segurar para não cair da cadeira. Já não tinha tal injecção de adrenalina há muito, muito tempo.

            – E agora?

         – Agora esperamos. Terça-Feira entro! – respondeu, com uma convicção tão forte que quase estranhei. Terça seria passado quatro dias. Escusado será dizer que esses quatro dias passaram como se fossem quatro anos. Estranho foi que, nesses quatro dias, fizemos amor mais de dez vezes. A excitação do que íamos fazer, do que íamos ter, misturava-se com a excitação que o outro nos proporcionava, e vivíamos um para o outro, imersos em cada um. Aproximava-se o dia.

            Terça-Feira.

            – Tu ficas aqui! Vai correr tudo bem.

 

         XY

 

         Vai correr tudo bem, tenho a certeza. Só pode correr bem. São quatro da manhã, estou na rua desde as duas. Mando-lhe uma mensagem para o telemóvel, avisando que está tudo bem e vou avançar. Chego à casa, dou a volta e aproximo-me da porta das traseiras. Sem fazer nenhum barulho, não tenho problemas em entrar na casa. Sabia que não tinham nenhum alarme. Passo pela cozinha, estou no hall, vejo as escadas e alegro-me ao ouvir o sonoro roncar do marido. Subo, viro à direita, vejo a porta do quarto. Escrito na porta está “Inês e Beatriz”. Agora o mais difícil e arriscado, entrar sem a mais velha perceber, e sem fazer o bebé chorar. Estou nervoso, muito nervoso. Respiro fundo, rodo a maçaneta. Vejo o berço. Aproximo-me e, com todo o cuidado, pego na menina. Tenho-a no meu colo. Rodo e caminho em direcção à porta. A bebé abre os olhos. Peço a Deus para que não comece a chorar. Ao invés, olha para mim. Os seus olhos miram profundamente os meus, na minha loucura imagino que me chama pai com aquele olhar, e solto uma lágrima. Continuo a caminhar, estou no hall, olho a criança. Levanto os olhos, surpresa. Vejo a mãe da bebé, mesmo à minha frente, olha para mim, não diz nada.

            – Que fazes aqui? Não era isso que tínhamos combinado! – digo, num sussurro quase inaudível. Ela aproxima-se.

            – Desculpa, mas desde que me mandaste a mensagem para te abrir a porta não consegui mais dormir. Queria despedir-me de ti pela última vez – as lágrimas escorrem pela sua cara. Compreendo-a, mas quero ir embora o mais rápido possível. Adriana tinha sido a minha primeira namorada, nos tempos de universidade. Quis o destino que seguíssemos caminhos diferentes. A minha paixão morreu, e encontrei Isabel, a quem amo profundamente. Todavia, sabia que para Adriana, eu tinha sido o seu verdadeiro amor. Então, num gesto inumano, pedi-lhe, certa vez, o que não se pede a ninguém. Manipulei o seu amor, fiz com ela mais uma vez amor, e pedi-lhe, aí sim, o que não se pede a ninguém. Como me recordo. Deitada na cama, as lágrimas a molharem o lençol, disse que sim com a cabeça.

Aproximo-me. Adriana aproxima os seus lábios dos meus, e dá-me o nosso último beijo. A criança, no meu colo consegue ver, pela primeira e última vez, os seus verdadeiros pais beijarem-se.

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