Desalinho [2009]Ficção

Mendigo

Banda Sonora

 

Está um frio impressionante. Fui-me habituando a muitas temperaturas ao longo da minha VIDA, mas… ou está cada vez mais frio (não sei se será isso), ou a idade começa a não perdoar. Durante o dia caminho por Londres, caminho sem parar, vou pedindo esmola a este e àquele, mas é rara a pessoa que me dá alguma coisa. Caminho todo o dia para não sentir o frio, mas as pernas eventualmente fraquejam, e vejo com medo a altura em que tenho de parar. Caminho tanto que conheço toda e qualquer parte da cidade. Quando tenho de parar, vou para o metro. Viver num metropolitano não é das coisas mais saudáveis que se pode fazer, tenho perfeita consciência disso, mas prefiro viver respirando todos esses gases nocivos do que não viver de todo. São cinco da tarde, o sol já se pôs há muito tempo. Sento-me no chão, olho para as pessoas que passam, com os olhos colados no chão, com cara de cansaço, não vejo sorrisos. De vez em quando estico o braço. Quando os olhares abandonam a monotonia constante em que vivem, olham para mim, mas sinto-me invisível. Atravessam-me ao meio, espalham-se na parede atrás de mim. Isto… quando corre bem. Das outras vezes em que olham para mim, as sobrancelhas carregam-se, abanam ligeiramente a cabeça, e seguem sempre. Sou parte desta sociedade, mas não vivo nela. Vêem-me como um vírus. E será que sou?… Tomei muitas decisões erradas nesta VIDA, como tomei… mas será que tenho que pagar por elas para sempre? Será um destino do qual não posso fugir? E devo fugir? Ou devo baixar os braços e deixar de tentar?… Em que é que estou a pensar?… Já os baixei há tanto tempo…

Por vezes, atrevo-me a sonhar. Estou sentado no metro, vejo turistas, esses os únicos que sorriem, retirando a monotonia dos lábios de toda a gente. Londres como a segunda cidade europeia mais visitada tem turistas o ano todo. Eu conheço Londres de ponta a ponta. A matemática é simples, sonho que poderia ser um simpático e barato guia turístico. O sonho não passa ao acto, pois já tentei, e fracassei, como fracassei…
O pior é a humilhação.

Certa vez fui esperar à estação de autocarro e ofereci-me a um sem número de grupos para ser o seu guia turístico. Um simples “não” seria suficiente. Mas… quando esse “não” vem com uma gargalhada, quando se afastam a gozar-me, continuando a olhar para trás… quando o “não” vem acompanhado de um sinal facial que me diz que só se fossem doidos aceitariam… aí dói-me, como dói… Foi só um dia. Bastou para arrasar esse meu modesto sonho, lançando-me numa visão explícita de como nunca vou conseguir fazer parte de nada.

O metro tem de fechar. Saio, está tanto frio. Apanho uns jornais e enfio-os por entre a roupa, tentando isolar-me mais um pouco. Vagueio entre a noite procurando alguma coisa. Alguma coisa para comer, para me aquecer, alguma coisa para alguma coisa. Toda a gente pensa, eu sei, que o que nós, mendigos, procuramos, cinge-se a um par de coisas, comer, beber, drogas, seja o que for. Na verdade procuramos, ou pelo menos eu procuro, muito mais. Em cada passo que dou procuro algo. Uma espécie de futuro diferente, já ali ao virar da esquina, um futuro que nunca está lá. Será por isso que tanto caminho? Procurando , mais do que me aquecer, ver um estar diferente, um sorriso ou um… simples futuro? Terá fugido para a próxima esquina? Claro que não, nunca existiu. Mas eu vou procurar, e procuro sempre, alimentando, a cada segundo que passa, um vazio enorme dentro de mim.

Quando me sinto mais uma vez cansado de tanto caminhar, aninho-me num canto, perto dum banco. Encolho-me o máximo que posso, tentando assim tremer menos. Passam pessoas na rua e alguns comentam que estou a ressacar. Quase sorrio, pela primeira vez em dias, ao pensar os anos que passaram desde que deixei a heroína. Mas é assim. Onde quer que vá, o que quer que faça, levo atrás de mim uma etiqueta enorme, faço parte dum estereótipo que nunca me vai deixar fazer mais nada na VIDA.

Começo a sentir-me sonolento e muito fraco. Já ignorei a vontade do estômago há muitas horas. É quando aparece um grupo de três turistas. Abro um pouco os olhos e vejo três jovens com os seus vinte e dois anos, de aspecto do sul da Europa. Chama-me e dão-me uma sanduíche, dizem que lhe ofereceram muitas e que eu posso ficar com aquela. Quero agradecer mas as palavras não saem. Quero comer, mas mexo-me com muita dificuldade. Deixei de tremer há meia hora. Avisto ao longe um relógio digital, que aponta, além das horas, uma temperatura de dois graus negativos. Penso em dormir um pouco, e em comer a sanduíche depois.

Fecho os olhos. Não volto a abrir.

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