Estórias em Vão [2007]Ficção

Apreciar

– Desculpe, vamos fechar.

– Desculpe, vamos fechar – acordo da minha, vamos chamar-lhe, submersão literária. Lia avidamente “O Retrato de Dorian Gray”. Entrara na biblioteca pouco passava das 14h e agora eram já as 18h. Olho o relógio, que de facto confirma que, mais uma vez, quedei-me até ao final no mesmo sítio de sempre, a biblioteca, com meus ami­gos, Ulisses, Conde de Monte Cristo, Veronika, e por aí fora.

Levanto-me, pego no caderno onde gosto de apontar as minhas passagens preferidas, e guardo no meu saco verde-escuro. Guardo os óculos e saio. Uma aragem fresca passeia na rua e ao ver-me de­cide mudar-se para o meu corpo, onde se diverte um pouquinho arrepiando cada pelo. Levanto a gola do casaco e vou para o café do costume, onde vou todos os dias quando saio da biblioteca. Pelo caminho cruzo muitos olhares. As pessoas olham para mim porque sou bonito, e aproveito isso para as olhar nos olhos e, por segundos, tentar encontrar a inspiração que me falta.

Ao chegar, peço um café, abro o meu outro caderno. Cruzo as per­nas e tento concentrar-me. Nada. Nada. Não consigo escrever nada. Que legado será o meu? Não consigo nem posso encontrar alguém para constituir família, não vejo em plantar uma árvore uma grande coisa, e escrever um livro é a minha alternativa para deixar alguma coisa neste mundo. O tempo urge e quem sabe se daqui a um ano ainda estou aqui, quem sabe se não fui já levado por esta doença que me consome dia após dia…

O café chega, e bebo devagar, apreciando cada trago. À minha vol­ta pessoas submersas em suas VIDAS, rindo, falando, lendo… A em­pregada quase corre dum lado para o outro tentando atender todos os pedidos. Estas pessoas que vejo à minha volta… já fui como elas, preocupava-me com isto, com aquilo, coisas sem interesse nenhum, e não me preocupava com o mais importante. Agora que sei que vou morrer em breve, tal como Veronika, só agora que sei que vou perder algo, o consigo apreciar.

Se o Homem soubesse o quão frágil tudo nesta VIDA é, segura­mente aprendia a rir-se quando um pneu furava, a sorrir quando pisasse uma poça de água, a apreciar cada segundo desta existência fugaz.

Neste momento paro no meu pensamento. Sempre tentei escrever disto, daquilo, que vejo à minha volta, nunca logrei. Mas nunca pensei em escrever sobre o que vai dentro de mim. Como era, como sou, como percebi que desperdiçava algo tão valioso como a VIDA. E quem sabe…

Se um dia apenas uma pessoa me ler, e apenas numa pessoa o meu pensamento tiver alguma influência, ensine, nem que só um pouquinho essa pessoa a apreciar mais a VIDA, acho que já me dou por contente…

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