Estórias em Vão [2007]Ficção

Consulta

– Então bom dia Sr… [olho subtilmente para a sua ficha para ver seu nome] Videira. Faca favor de se sentar.

– Obrigado.

– Importa-se que grave a nossa conversa?

– De maneira nenhuma, doutor. – ligo o gravador.

– Como sabe, está aqui devido às acusações de que foi alvo, e para eu tentar ajudá-lo. Certo?

– Sim, doutor, eu sei. Acusam-me de pedofilia.

– Mais ou menos. Sabe que a partir de uma certa idade já não se chama pedofilia.

– Isso para mim dá-me igual, é um nome, como qualquer outro.

– Não é bem como qualquer outro, este nome trás consigo uma conotação muito negativa, e sérias repercussões a nível legal.

– Eu sei.

– Ok. Gostaria de começar por relembrá-lo do que o ouvi dizer… que muita gente o achava louco. O que tem a dizer acerca disso?

– Como assim?

– Acha-se isso? Ou acha-se em pleno domínio das suas capacida­des mentais?

– Sim. Mas se não tivesse domínio não teria discernimento sufi­ciente para o perceber.

– Sim, é verdade, mas também creio que não responderia assim.

– Diga-me, Sr. Videira…

– Pode tratar-me por Manuel.

– Diga-me, Sr. Videira, o que o levou a ter relações com duas ra­parigas de quinze e dezasseis anos?

– Talvez o mesmo que o leva a si a ter relações com qualquer outra 80

mulher, doutor. Você gosta dela, ela gosta de si. Você quer fazer algo que não vai contra a vontade dela, você faz… Porque você quer, e porque ela quer…

– Tudo bem Sr. Videira. Mas tem de compreender que não é exac­tamente a mesma coisa. Uma rapariga com quinze ou dezasseis anos é menor de idade. Compreenda que o termo “menor de idade” não é só um conceito, uma junção de palavras criadas pelo homem. Menor de idade porque uma pessoa com quinze, dezasseis ou dezassete anos ainda não é um adulto. E isto porque ainda não desenvolveu tudo o que tem a desenvolver, quer a nível mental quer a nível físico. Claro que não é no dia em que fazem dezoito anos que todas as mudanças (vamos chamar-lhe assim) têm lugar. Muitas vezes estas mudanças só acabam depois, outras vezes já acabaram antes.

– Mas você não percebe. Eu falava com elas, muito. Não fiz o que fiz num acesso de espontaneidade. Fi-lo porque vi nelas pessoas ma­duras, capazes de decidir por si.

– Mas Sr. Videira, elas são adolescentes, jovens. E você, que tal como eu, também já foi um, sabe que as decisões dos adolescentes pautam-se não por grandes reflexões, mas por impulsos, num mo­mento querem uma coisa, noutro momento querem outra.

– Sim, também é verdade.

– Por isso poderia ter pensado que, a certa altura, quando per­cebessem que nenhuma das suas amigas fizera o mesmo, se iriam arrepender.

– Mas elas não se arrependeram!

– Sim, Sr. Videira, arrependeram-se, e é por isso que o senhor está aqui. Não se arrependeram por ter tido relações consigo, mas por terem tido relações com uma pessoa muito mais velha…

– Mas você não sabe o que é…

– Como assim?

– Ser eu! Não sabe como é ser eu! Você é atraente, tem o seu emprego, imagino quanto vai ganhar com esta consulta. E imagino quantas mulheres pode arranjar no segundo em que sai à rua! Mas eu… Quando conheço alguma mulher elas desaparecem no instante em que sabem que ainda vivo com a minha mãe ou que trabalho como porteiro.

Foi por isso que vi nelas, raparigas bonitas, uma oportunidade de me sentir melhor comigo mesmo. E com elas era tão mais fácil mentir, porque não tem a experiência de VIDA que tinham todas as outras mulheres. Não conseguiam perceber que um gerente de uma cadeia de restaurantes não poderia conduzir um Opel Corsa, ou que poderia andar vestido com roupas da feira. Não pensavam nisso sequer.

– Sim Sr. Videira, mas compreende porque agiu mal? Aproveitou-se desta falta de maturidade de que eu falei, para se sentir melhor consigo mesmo. Compreende onde quero chegar?

– Sim, compreendo. Realmente fiz mal, claro que sim. Sempre o soube no fundo, mas o que disse aqui nesta sala a tentar convencê-‑lo foi o mesmo que disse a mim desde o primeiro momento. Mas, talvez por necessitar de acreditar, foi mais fácil convencer-me a mim próprio que a si. E, na minha (nada) inocente ignorância, acreditei que nunca se descobriria.

– Sr. Videira, creio ter chegado onde queria chegar. Agora lembre-se de tudo o que falamos aqui. Vai ser tudo bastante mais fácil na lei para si se assumir desde já o seu erro, e não persistir em afirmar-se inocente até ao fim. Compreende?

– Sim, doutor, obrigado. – responde, levantando-se e estendendo-me a mão.

Fora assim tão fácil…

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