Desalinho [2009]Ficção

Sentir

– Não, não sei se estás a perceber… – digo, perante a sua questão. Estamos sentados no canto do café. Diante de mim tenho Maria, e duas chávenas de café – Não se trata de apregoar, duma forma poética, um sentimento, uma ideia… é mesmo o que sinto. Sinto que o mais importante que temos na VIDA é a capacidade de sentir. Mais do que ter alguma coisa, é sentir alguma coisa…

            – E é grátis… – diz, sorrindo – Mas… quando falas disso, parece quase um culto…

            – Bem, e… é um culto. Não é uma ideologia tipo… de uma seita… Não se trata de querer arrastar as pessoas para o meu mundo… Mas mais de tentar fazer com se arrastem para o seu mundo, para que o sintam, e possam ser mais felizes!

            – Mas não achas que isso é um bocado presunçoso? – pergunta. Alguém entrou, e sentimos uma lufada de ar fresco percorrer a sala e assentar na nossa pele.

         – Como assim?

            – Tipo… não me leves a mal, nem me interpretes mal… Mas quem és tu para saber se as pessoas sentem ou não, se são felizes ou não? És um iluminado? – sorrio.

            – ‘Tá-se bem, não te preocupes! – passa pela minha cabeça um exemplo que apenas confirmaria esta sua assunção – Não, não sou o iluminado! Mas descobri, ou tenho vindo a descobrir, o que me faz feliz…

            – Mas isso não tem de ser o que faz as outras pessoas felizes! – interrompe.

            – Eu sei, eu sei! Mas interrompeste-me. Era isso que ia dizer. Eu sei lá se é isso que faz as outras pessoas felizes! Sei que a mim me faz feliz, e o mínimo que posso fazer é lançar a ideia para o mundo, e… sei lá… é como… – tento organizar os meus pensamentos – Se cada pessoa partilhasse com o resto das pessoas aquilo que a faz feliz, se calhar seria mais fácil para outras pessoas, que ainda não descobriram o que as fazem felizes, descobrir! Percebes? Ainda que não seja nenhuma das hipóteses que estão na mesa, ao menos pode fazê-las pensar, e… descobrir!

            – Mas pá… Eu conheço-te bem, e sei que não é o caso… Mas já pensaste que isso pode parecer um bocado treta! Quero dizer… Não podes dizer que te faltam coisas importantes… Não és pobre, não és feio, não és burro… e quando falas dessa aparente facilidade em ser feliz, pessoas que não têm coisas que tu tens podem sentir que é uma treta, porque estás a falar duma posição confortável… – faz-me sentido o que me diz, e já nisto tinha pensado.

            – Ok… eu percebo o que queres dizer… mas na verdade acho que essas coisas não têm de ser assim tão importantes…

            – Para ti! – interrompe.

         – Repara que eu disse “não têm de ser”, não disse “não são”… Simplesmente acho que estamos todos vivos, e isso é algo comum a todos nós, certo?… E conseguir perceber isso, que existimos, e muito provavelmente apenas uma vez, pode tornar tudo… pode fazer com que se adopte uma perspectiva da VIDA completamente diferente! É claro que todos nós temos dias de merda, situações de merda… cada um na sua escala! Quem sou eu, ou quem és tu, de certa maneira, para nos queixarmos se a nossa namorada nos trai, por exemplo, quando no mesmo momento um miúdo qualquer de sete anos está a trabalhar numa linha de montagem na Índia? E quem somos nós para nos queixarmos de termos reprovado numa cadeira, quando um amigo, ou uma amiga nossa qualquer, acabou de apanhar o namorado ou a namorada na cama? Se pensarmos assim, até parece estúpido sentirmo-nos mal com estas coisas, pois pode sempre ser pior… Mas ainda assim sentimos! E é completamente normal!

         – Não sei se estou a acompanhar…

         – Pá, quero dizer que todos temos melhores, ou piores condições que qualquer outra pessoa, mas isso não nos pode… não nos devia impedir de fazer o melhor que temos com o que temos! Relativizar, perspectivar de diferentes maneiras a mesma coisa. Sentir a VIDA e aproveitar…

            A conversa acabou por se desviar. Enquanto escrevia esta estória,… este texto, não é bem uma estória… Enquanto escrevia este texto, sentado na minha cama, em Mysen, a ouvir Zero 7 (Destiny) com as luzes apagadas, quase que me prendia nos argumentos do personagem que questiona, que até foi criado por mim… Mas isso fez-me pensar, e pôr em palavras algo que vai voando no meu pensamento. Realmente todos nós estamos numa posição melhor, e pior do que tanta outra gente, e isso às vezes pode ser cruel. Pode ser cruel pois estamos tristes, e pensamos nesses tais miúdos na Índia, por exemplo, e em vez de nos sentirmos contentes por não estarmos tão mal assim, sentimo-nos culpados e sem direito de sentir o que sentimos. Claro que não são pensamentos que nos assolam todos os dias… E claro que estou a falar no plural, mas não sei o que vai na mente de cada pessoa…

            Mas sei que Sentir é fácil. Basta esticar a mão e já está. Não tem de ser o frio. Para mim será, concerteza, uma das melhores maneiras de sentir. Mas apenas uma entre milhares. É das coisas que gosto. Não aquele frio quando estamos agasalhados e ainda assim trememos. O meu frio preferido é aquele em dias de céu limpo, com o sol a brilhar, imponente, lá em cima. Os dias em que a nossa análise sai menos precisa e nos enganamos no vestuário, saindo de t-shirt, que nos faz arrepiar de vez em quando e sentir o Vento entrar nos nossos poros. Esse frio é fantástico. Melhor só no final duma corrida. O corpo está quente como esse sol, mas ao redor a temperatura desafia. Ainda assim, o calor que sentimos dentro de nós permite-nos sentir o melhor do frio, senti-lo mesmo na nossa pele, sentir as fronteiras do nosso corpo em contacto com o mundo.

            Sentir.

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