Muito mais vezes do que eu desejaria, dou por mim envolto em conversas acerca de um suposto equilíbrio do Universo que acaba por traduzir-se numa certa noção de karma.
Nessas conversas o karma discutido cai, quase sempre, em dois campos. O karma que relaciona as acções de uma pessoa nesta VIDA e que se vai repercutir na VIDA que vamos ter a seguir a esta e, muito mais frequentemente, o karma que se relaciona com as acções de uma pessoa nesta VIDA e que se repercutirão nesta VIDA.
Quanto à primeira proposição, toca em conceitos como reencarnação que me distanciam do que quero falar agora. Mas não posso deixar passar sem referir o quão insensível ela é. Essa insensibilidade não é argumento para desvalorizar a ideia deste tipo de karma, é certo, mas, na ausência de provas concretas da sua existência, estranho como alguém escolhe acreditar em algo assim. Porque implica que uma pessoa que nasça no sítio errado, à hora errada, no corpo errado, com a ideia errada, enfim… implica que qualquer pessoa que nasça com qualquer circunstância desfavorável o mereça e que quem nasça em condições altamente privilegiadas deva ser adulado por todo o bem que há-de ter feito numa VIDA passada. Felizmente é raro encontrar pessoas que pensam assim, ou isto seria apenas mais uma ferramenta para aumentar o fosso entre as classes, atribuindo uma meritocracia além-VIDA. É insensível. Ninguém merece nascer e morrer passado uns anos por subnutrição. Ninguém merece nascer num país em guerra. Ninguém merece nascer doente.
Quanto à segunda proposição, aquela que implica que as acções de uma pessoa se repercutirão nesta VIDA, posso dividir este conceito entre o óbvio e o elusivo. O óbvio, para mim, é que se eu for simpático para alguém, isso aumenta a probabilidade de a pessoa ser simpática comigo também, ainda que não o garanta, e o inverso igualmente. É um karma superficial, pois eu posso ser simpático e alguém cuja companhia é agradável, mas isso não tem que ver, necessariamente, com a minha índole.
Há pessoas simpáticas que revelam o inesperado e de mal-encarados que o inesperado revelam.
Se me permitem o paradoxo, dentro desta forma mais óbvia de karma, há uma mais indirecta: Se eu for uma pessoa boa aos olhos dos outros hoje, ou continuamente, ao longo dos tempos, esse estatuto que posso alcançar, o de pessoa boa, pode convidar a generosidade dos demais se tal for preciso, nem que seja por pessoas que não beneficiaram da minha bondade, generosidade, ou seja o que for, mas por pessoas que ouviram dizer de alguém que eu era de determinada maneira. Se eu precisar de caridade e a outra pessoa não me conhecer, eu recebê-la ou não, nada tem a ver com aquilo que eu fiz na VIDA até àquele momento mas, única e exclusivamente com quem a outra pessoa é e o que vê naquele momento. Se ela é boa, se é má, se está bem-disposta, se tem capacidade, e se me acha bonito, simpático, necessitado, desesperado, merecedor.
Finalmente, o karma do qual tanto ouço falar, o elusivo, aquele para o qual nunca encontrei prova alguma. O karma invisível, indirecto, divino, diria eu. As pessoas que acreditam neste tipo de karma acreditam que as nossas acções, boas ou más, vão voltar a nós, não apenas nas maneiras directas que referi antes, mas de outra forma, como se houvesse um registo algures com todas as nossas acções. Como disse, estas pessoas falam, muitas vezes, de uma noção de equilíbrio no universo, equilíbrio nas coisas. Mas eu não acredito no equilíbrio do universo. Em termos físico-químicos imagino que haja algum equilíbrio mas, face a minha falta de academia, não me atrevo a dar um passo sequer na argumentação. Em termos de acções humanas não acredito nada. Apesar de não ser um total relativista moral, a maior parte das acções humanas são subjectivas, o seu valor pode depender de pessoa para pessoa, e quando fazemos o bem – esse bem é, precisamente, subjectivo. Não é, também, a sociedade que dita o bem e o mal, objectivamente. Isso mudou ao longo dos tempos, e esta noção de temporalidade da moralidade só aponta para a subjectividade.
Assim, acreditar numa justiça cármica sugeriria um juiz que, não só decidisse o que era bom ou mau, como também se prestasse a apontar cada acção nossa e a devolvê-la. Não tenho razões para crer que exista tal juiz.
Quando não observam estas devoluções, as pessoas vão, por vezes, um passo mais longe. Quando sabem que alguém é mau e não tem aparente consequência negativa, por vezes deitam-se a adivinhar que, lá no íntimo dessa pessoa, ela não possa ser feliz, e que essa infelicidade é, já, a consequência negativa necessária. É um exercício fútil e arrogante, até, sendo que estão a dizer que sabem como alguém se há-de sentir só porque acham que a pessoa se devia sentir assim.
Falhando tudo isto, ou concomitantemente com tudo isto, há sempre o viés cognitivo. Ignoramos as inúmeras situações em que alguém não tem o que achamos que merece mas quando, por pura lei da matemática e probabilidade alguém, por acaso, recebe o que merece, vemos nesse acidente uma causalidade e mais um argumento para suportar a nossa falaciosa filosofia.
As pessoas precisam de acreditar que há justiça no mundo. É compreensível, é parte do que nos faz seguir em frente. Aceitar que pessoas más se saem bem e que pessoas generosas possam ser espezinhadas pela sociedade é violento e pode levar alguém a baixar os braços. É importante não baixarmos os braços. Mas não creio que nos devamos iludir com ideias que carecem de qualquer validação científica. Além de, como disse, isso poder levar a uma análise da sociedade e das circunstâncias das pessoas que é injusta para elas, também pode fazer-nos, por preguiça, evitar penalizar quem devemos penalizar, agraciar quem deve ser agraciado, e podemos deixá-lo para este vasto universo que não quer saber de nós. Que não baixemos os braços nem deixemos para o universo a justiça, mas que a tragamos nós, de dentro para fora, e que nunca a vejamos de fora para dentro.