Desalinho [2009]Ficção

Como Acabou

         !

            Sou presenteado com um dia bonito. Nada melhor que um Domingo solarengo! Almoço com minha mulher e o Diogo, o pequeno, comemos vitela assada, no terraço. Bebo um sumo de laranja fresco.

            – Queres café? – pergunta-me Dora.

            – Não, vou tomar à Tulipa. Não queres vir?

         – Não, vou ficar em casa, tenho uns testes para corrigir… – responde, enquanto levantamos a mesa.

            – Podes fazer isso lá! – digo ainda, tentando que pelo menos desta vez fosse comigo.

            – Não me apetece Vítor, vai tu – conclui, com um sorriso que me diz “quero estar na minha paz e sossego em casinha”.

            – Ok, não se fala mais nisso! E tu, puto, queres ir beber uma cola?

         – Hã? – pergunta, distraído – Ah! Não, vou pra casa do Filipe jogar computador.

         – Pronto, o velho vai sozinho, não há problema! – digo, acabando a conversa. Não há, realmente, problema. É claro que preferia que fossem comigo, mas tudo bem. A minha companhia é sempre agradável. E dura, dura… Sim, falo dum livro… Não chateia, não se repete, e cala-se quando eu quiser! Hum, não há uma anedota assim sobre outra coisa qualquer?

            – Então até logo! – despeço-me, com um beijo nos lábios de Dora.

            – Um café, por favor – peço, ao senhor Fernando que, com o seu cabelo louro quase branco e olhos azuis claros, sempre me faz lembrar um Inglês. “Mister Ferdinand!” (?). Abro o livro, e parto para outros mundos por uma hora. A escrita agrada. Boas descrições, sem ser exaustivas, e sentimentos explicados com profundidade… ainda que os questione… Não será bem questionar. Mais reflectir. Penso na minha própria VIDA. Leio “Gone”. Penso na minha própria VIDA. Leio “Carta”. O desespero latente descrito por AP Moreira, o conterrâneo escritor, deixa-me a pensar se estarei a viver o amor da minha VIDA. E especialmente se, caso não esteja, me deveria sentir mais… despedaçado, como usa por vezes. Num acesso de honestidade que guardo apenas para mim, admito que não… Penso em Ana. Deve estar a aparecer por aí a qualquer momento. Hoje em dia mal nos falamos… A nossa comunicação passa por uns levantar de sobrancelhas de vez em quando. Outras vezes, vamos longe, e chegamos a dizer “olá” um ao outro. Uau. Volto a pensar, e penso se terei ido à Tulipa porque sabia que aqui costuma vir, ou se aqui vim, simplesmente porque sim…

Sim, eis que chega Ana. Senta-se na mesa de Maria, Fátima, Luísa. Desta vez nem as sobrancelhas levantou. Não acredito que tenha feito por me ignorar. Isso apenas se faz quando ainda existe algo. Fecho o Desalinho, pouso-o na mesa metálica do café, encosto-me para trás e penso, enquanto olho, disfarçadamente, para Ana. Está a uns metros de mim, a falar com as suas amigas, os seus filhos brincam no Jardim com os filhos das suas outras amigas. Penso se será que pessoas como Maria, Fátima, Luísa, fazem ideia daquilo por que passamos, Ana e eu. Se fazem ideia do que choramos um pelo outro, das vezes que fizemos amor, das vezes que nos prometemos um ao outro. E penso se a própria Ana ainda pensa nisto, ou se escondeu o pensamento num qualquer canto inóspito da sua mente. Na verdade, talvez até eu próprio o tenha feito durante tantos anos, até hoje, em que olhei para ela com os olhos dos meus vinte anos.

            Será que pensamos, sem saber que o fazemos, que se não pensarmos nas coisas será como se elas não tenham nunca existido? Não deveríamos guardar com mais cuidado as memórias que temos? Como posso ter esquecido, durante tantos anos, aquela noite, há trinta anos, em que, sentados lado a lado, vendo o fogo de artifício em Macieira de Cambra, nos beijamos pela primeira vez? Sorrio ao pensar nisto, e sinto crescer dentro de mim uma profunda nostalgia. Mas é algo bom. Mostra-me que já vivi um amor intensamente, algures na minha VIDA, apesar de ter acabado como acabou. E como acabou?

            E foi o meu único amor? Não foi. Tenho sorte de ter quarenta e nove anos (não é assim tanto, eu sei), estar casado há quase vinte e cinco, e ainda amar a minha mulher. Somos diferentes em tanta coisa, e isso por vezes afasta-nos, mas nunca tanto como o ser tão igual a Ana de si me afastou.

Mas, ao ver Ana bebericando o seu café, daquela maneira que já me fez gozá-la tantas vezes no passado, segurando a chávena com o dedo mindinho apontando o céu, qual dama da mais alta sociedade Inglesa, volto a pensar… mas como acabou?

 

Como Acabou

           

Gosto dos sítios para onde a minha mente me leva, e por isso mesmo, não quero começar pelo fim. Quero recordar como começou…

            Aconteciam as festas setembrinas em Macieira de Cambra, e era o dia do fogo de artifício. Estávamos em mil novecentos e setenta e oito, e eu estava no alto dos meus dezoito anos. Contente com o meu recém-adquirido estatuto de adulto, pavoneava-me no Mini 1000 a cair de podre do meu pai. Ao meu lado Rogério, que apesar de ser da minha idade, estava a demorar um pouco mais tempo a tirar a carta. Ajeitava o espelho retrovisor, para me poder ver melhor e confirmar com mais frequência se o meu cabelo estava impecável quando vi, ao fundo, Ana. Vestia um vestido simples, branco, pelos pés. O seu cabelo loiro ondulava lentamente, fruto do suave Vento de Setembro. Lembrei-me da última conversa que tínhamos tido. Começáramos a falar nos planos para o futuro, e acabáramos a falar da aproximação que estávamos a sentir. Ana era matreira, e levava-me a dizer coisas que eu queria guardar só para mim. Queria conquistá-la, e não ser conquistado. Todavia, era tarde demais.

            – Pá, está ali a Ana! É hoje que lhe dou um beijo! – disse a Rogério, com um tom de voz mais confiante do que realmente me sentia.

            – Tu estás doido?! Andas atrás da gaja desde o início do ano, não tens hipótese! – rematou. Apesar de não estar tão confiante como pudesse ter parecido, sabia em que pé estava com Ana, e o que afirmara que ia acontecer não era de todo impossível. Estacionei o carro, deixei Rogério e, num passo apressado, alcancei-a.

            – Olá! – cumprimentou-me, com o seu sorriso angelical. Como me recordo. Era o que mais adorava em Ana… Tinha um ar, e um sorriso, angelical e puro, mas, por outro lado, não era santa nenhuma, e as nossas conversas não eram isentas de significados dúbios…

            – Então, tudo bem? – perguntei, ajeitando o cabelo.

            – Tudo óptimo! Vê lá se precisas de mais brilhantina! – sugeriu, a rir. Fiz-lhe uma careta, e caminhei a seu lado. Virámos à esquerda e veimos toda a gente a povoar a estrada e o jardim. A banda tocava, no coreto, umas músicas de que não me recordo. Perguntei se não queria ir tomar um café, e assim o fizemos. Voltámos para trás, subimos a rua e entrámos no café Avenida. Como me lembro… Acho que eram umas nove horas da noite, e ficamos sentados num canto, indiferentes e em desalinho com os velhos que passeavam dum lado para o outro, pagando-lhe eu algumas cervejas, e oferecendo-me ela, de vez em quando, uma aguardente. Não me sentia, por regra, triste, zangado, revoltado, mas ainda assim, quando estava com Ana, sentia como se me tivessem tirado um qualquer peso dos ombros, saindo esse peso não sabia eu de onde… O seu sorriso jovial entrava dentro de mim e afastava todos os possíveis sentimentos menos positivos. As horas voavam, eu perdia-me entre conversas e sentia-me o que realmente era, um adolescente. Que saudade! Incrível, quase dói, agora que penso nisso! Não me sinto deprimido, mas ao mesmo tempo dói realmente lembrar esses tempos, em que tudo era simples, em que tinha dezoito anos e estava perdido de amores… Enfim… tudo passa. Ou… algumas coisas passam.

            Quando saímos do Avenida, faltavam dez minutos para o fogo de artifício. Descemos a rua abraçados. Não daquela forma romântica típica dos casais, mas abraçados apoiando-nos um no outro, parando a meio do caminho contando ou relembrando um qualquer episódio engraçado, quase a gritar, para falar mais alto do que o outro… memorável. Sentia que um qualquer momento especial se aproximava. Não sabia ao certo o que seria, mas sentia-o. Questionava-me se a deveria beijar. Decidi que sim, mas nenhum momento era bom! E morria de medo que saísse furado… deitava por terra toda aquela química que sentíamos. A cada passo pensava “será que é agora?”, e esperava que ela tomasse a iniciativa.

            Mais tarde soube que a própria Ana pensava exactamente o mesmo, mas na pele da donzela que aguarda o avanço do cavalheiro. Sendo Ana como é, ou era, quando mo contou não se absteve de adjectivos menos agradáveis para classificar a minha tardia acção…

 

Como Acabou

 

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Procurando um sítio merecedor e tão esplêndido como Ana era para mim, sentamo-nos no muro perto do jardim mais pequeno de Macieira. Não estávamos sozinhos, não, nem aparentemente era algo de especial. Mas nem por isso deixava de ser um sítio com uma visão sublime, onde podíamos ver o céu rebentar, acompanhando os nossos corações. Ana ia gozando com um ou outro senhôr bêbedo, fazíamos piadas e riamo-nos mais alto do que deveríamos. Era divertido, que posso dizer? Quando vieram os primeiros morteiros, demos a mão. O polegar de cada um massajava os nós dos dedos do outro. O sangue fluía rapidamente. A cada foguete, um pequeno tremor, uma pequena desculpa para estravazar o excesso nada excessivo de energia que sentíamos. Aquela meia hora passou como meio segundo, ainda que eu tenha tentado fazer com que demorasse meia VIDA. Não deu. Os últimos morteiros vieram, as pessoas dispersaram. Ficámos no mesmo lugar. Não conversámos. Tinha de agir, fazer qualquer coisa. Olhava para si, na esperança de que olhasse para mim e nos pudéssemos beijar, mas o seu olhar continuava cravado algures no céu, a ver os foguetes que já não existiam. Mantive-me, até que consegui ver os seus olhos cor de resina. Demoramo-nos apenas o tempo suficiente em cada um para percebermos que ambos queríamos mais do que um dar de mãos. Aproximei os meus lábios dos seus e beijei a sua boca, que sabia a aguardente. Imagino, claro, que a minha não soubesse diferente. Depois desse primeiro curto beijo demorado afastamo-nos apenas os centímetros suficientes para ganhar fôlego e tomar consciência do que se estava a passar – o início de uma relação. Um momento único na VIDA de cada um de nós. Passados esses segundos mergulhamos num beijo mais intenso, desiquilibramo-nos e quase caímos para o outro lado do muro, evento que fez com que as nossas bocas se descolassem com tal velocidade que os meus dentes rasgaram uma pequena parte dos seus lábios. Muito sérios, saímos de cima do pequeno muro, olhamo-nos, e desfizémo-nos numa gargalhada sonora e pura. Abraçei-a e voltamos para o centro da Vila, à procura do próximo bar. Pelo caminho beijei novamente os seus lábios que me sabiam a aguardente e ferro. Não me importava de beijar o seu sangue, não me importava de beijar fosse que partícula fosse do seu corpo.

            Estávamos apaixonados, foi assim que começou.

Como Acabou

 

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Estranho como, se as coisas começaram lenta e docemente, a partir daí os acontecimentos atropelaram-se como uma manada de bois em fúria. Estranho mas interessante. Nem sei porque uso o “mas”… Como se o estranho, por norma, não fosse interessante…

            Os primeiros dias de namoro foram marcados por fugidas, zangas, beijos e, no último dos primeiros dias, fazer amor. Nunca nenhum de nós tinha partilhado tal intimidade com outra pessoa, e penso, com um sorriso, na sorte que tive em ter feito amor pela primeira vez que fiz sexo.  Não havia mensagens no telemóvel, internet, nem nada que se pareça, o que fazia as coisas maravilhosamente mais espontâneas. Penso no par de vezes, durante a semana que antecedeu a sua ida para o Porto, em que apareci em sua casa às quatro da manhã, sem conseguir dormir e a precisar de me deitar consigo. Se fosse hoje, enviava-lhe, provavelmente, uma mensagem; Ana chamar-me-ia à razão, e hoje não teria estas memórias. Não me lembraria das noites quentes em que os meus olhos, fixados no tecto, ansiavam o seu toque. Minto. Lembrar-me-ia desse desejo, mas quem sabe o sorriso que agora tenho comigo fosse triste… não tivesse tomado a iniciativa de me escapulir de minha casa e, com astúcia, entrar na sua, pela janela da cozinha, e caminhar até ao seu quarto, com o meu coração desesperado, a bater mais do que o de um beija-flor. Era mais o coração… de um beija-amor! Solto uma gargalhada com este meu comentario foleiro e a Ana do presente olha para mim por uns milésimos de segundo. Recorde! Reparo no seu braço, como se mantém firme, não se podendo adivinhar qualquer das gorduras que se alojam nestas almas de meia idade. Eu, não posso mentir, continuo com bom aspecto mas, tenho de dizer a verdade (tantas protecções!), esta barriga já teve os seus dias. E nem de propósito…

            – Sr. Fernando, traga-me um fininho, por favor – peço, entretido e ansioso por voltar a mergulhar no passado. Quando o Britânico disfarçado volta com a bebida, estou a lembrar-me da cara da Ana do passado quando, sonolenta, me via deitar-se a seu lado. As suas pestanas, que a custo se descolavam, tacteavam a realidade e sua boca abria-se em espanto.

            – Estás maluco? Que é que estás aqui a fazer? – fingia-se chateada, mas durava pouco, e cedo, depois de trancada a porta, estávamos no quente do corpo do outro.

            Essa semana de intensidade passou. Não conseguiamos estar longe um do outro. Mantínhamos um prazeiroso segredo, mas estávamos juntos tanto quanto podíamos. Eventualmente chegou Domingo, e com ele a ameaça da distância. No dia seguinte Ana começaria os seus estudos de medicina. Parte de mim queria que não fosse, outra parte de mim queria ir consigo, mas a mais pequena parte, e a mais real (porque é sempre assim?) começaria a trabalhar na Caixa Geral de Depósitos daí a um mês.

            – Vais esquecer-te de mim com uma pinta incrivel! – eu dizia. Nao o sentia verdadeiramente, mas algo me impelia a fazer-me de vítima. Era vítima do destino, isso é certo, mas na impossibilidade de o culpar, culpava, subtilmente, Ana. Afinal de contas, ela é que ia embora!

            – Nao sejas parvo! Tu é que vais começar a fazer-te ao primeiro rabo de sais que vires! – respondia, com todo o direito de contra-atacar. Estávamos na Frecha da Mizarela. Deitados numa rocha, eu descansava no seu ventre, e os seus dedos brincavam com o meu cabelo molhado. Ouvindo isto, levantei a cabeça, e olhei nos seus olhos. Queria discutir, nao sei porquê. Queria discutir, mas nem sempre é possivel, quando se vislumbram uns olhos de vinho doce em conluio com uns labios de morango, embelezando um rosto jovem e inesquecível… polvilhado de gotas de agua, quais lágrimas antecipadas.

            Beijamo-nos.

            Como Acabou

 

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Meus deus, como estava apaixonado! Aquele dia em que Ana partiu foi talvez o pior da minha VIDA até então! Que lindo… Ia para o Porto, não ia para a China! E eu estava em Vale de Cambra, não estava na Califórnia! Estávamos a menos de uma hora de distância, mas aquela intensidade, que talvez tenhamos vivido para termos de sobras, acabou por ter o mais perverso efeito, deixando-me completamente viciado! Encontrámo-nos em sua casa. Os seus pais tinham ido fazer as últimas compras para depois a levarem para o seu novo apartamento. Não fizemos amor. Os nossos beijos, por outro lado, eram carregados de emoção e energia, os nossos abraços queriam fundir os nossos corpos. Mas o tempo urgia. Ana chorava e dizia que me amava, eu permanecia no limiar do chateado, aborrecido, desesperado, e imensamente apaixonado. Hoje arrepio-me só de pensar na intensidade daqueles segundos que evaporaram. Que merda… Tudo bem que as nossas VIDAS tenham seguido estradas diferentes, mas porque temos de ser tão anónimos um para o outro hoje em dia? É estranho e levemente injusto. Completamente injusto se Ana não pensar já em mim. Bem… para ser sincero já não pensava em si há algum tempo. Tê-la visto e ter acabado o Desalinho foi uma mistura que suscitou em mim uma fome de lembranças e sentimentos. Daí que não, talvez eu não passe já nas lembranças de Ana. Talvez eu seja parte, não de um passado, mas de outra VIDA. Tenho de pensar na fantástica família que tenho agora para não me deixar afogar naquela tristeza de quem lembra. Sim. Foi bom e passou. E estou apenas contente por tê-lo vivido…

            Eventualmente, foi embora. A primeira semana passou, claro, lentamente. Depois veio o primeiro fim-de-semana e a frustração de não a ter só para mim. Mais uma vez, a semana intensa que tiveramos deixara em mim a ideia de que sempre poderia ser assim, de que sempre compensaríamos a ausência do outro com a exaustiva presença. Mas tinha de a partilhar com os seus pais, e até com os seus amigos! Claro que hoje, vendo as coisas com a distância que tenho, percebo que dizer coisas como “até os seus amigos” jogou o papel que jogou no eventualmente inevitável desfecho. Tentava afogar a minha frustração de não a ter sempre comigo, e tentava fazer cada minuto na sua companhia como duas ou três existências. Não funcionava.

            Começei a arranjar desculpas para ir ter com ela ao Porto tanto quanto podia. Desculpas para o meu pai, claro, que precisava de uma justificação para as minhas nem sempre baratas deslocações. Entrevistas de emprego, problemas com o carro, problemas com a tropa, tudo servia para ter duas ou três horas na companhia da minha musa.

            – Se dizes ao teu pai que andas a ir p’ró Porto todas as semanas por causa da Ana, podes esquecer! – advertiu-me, certa vez, a minha mãe. Não me custou aprender a lição. Assim, ia ter com Ana umas duas vezes por semana durante esse primeiro mês. Quando nos víamos explodíamos um no outro. Não ter as preocupações de que alguém nos poderia ver e, acima de tudo, termos um quarto por nossa conta, onde ninguém entraria, tornava a cidade do Porto no País das Maravilhas. Comprávamos vinho barato e deitávamo-nos por horas, contando Ana as suas estórias cada vez mais interessantes da VIDA de estudante, e contando eu o nada que vinha a ser a minha VIDA. Era como se vivesse sempre, ora esperando estar com Ana, ora estando. Era o meu centro.

            Eis que chegou o momento em que mais uma barreira se levantaria e nos deixaria um pouco mais longe. Passou esse primeiro mês, e começei a trabalhar. Acho que não estava exactamente preparado para o que me vi acontecer. Ter de acordar a uma determinada hora todos os dias, vestir fato e gravata, tratar toda a gente por você era algo que eu, com os meus inexperientes dezoito anos, via como incrivelmente difícil. Além disso, se continuava a poder ir ter com Ana, encontrava-me muito mais cansado, e apenas o podia fazer depois das seis da tarde. Este cansaço jogava, também, o seu papel… pois por vezes encontrava-me mais predisposto para discutir.

Acho que as discussões frequentes começaram mais ou menos passados quatro meses. Janeiro, acho… Via nascer em mim alguém que desconhecia, e via nascer uma distância de Ana para mim que me custava aceitar. Era injusto, eu sei que era, mas Ana não ajudava em nada a minha tristeza. Acho que, por mais estúpido que pareça, me sentia triste com o facto de Ana não se sentir tão triste quanto eu devido à nossa distância. Tínhamos períodos, claro, períodos de altos e baixos… porém, se os períodos altos inicialmente eram de grande duração e os baixos se distribuíam por uma ou duas semanas, fomos vendo os papéis serem trocados sem que déssemos conta.

            Dançávamos nesta roda de inconstância como se tivéssemos nascido dentro dela. Víamo-nos e beijávamo-nos, fazíamos amor e tudo eram rosas. Ana começava a falar dos novos amigos que fazia, as estórias que vivia, cada vez mais intensas e interessantes, e eu via nascer em mim um bicho faminto por algo que não o que tinha. Falava de nós e Ana insistia em mudar de assunto. Se para mim cada detalhe da minha VIDA me recordava de algo em Ana, para si era como se alguma recordação da sua VIDA lhe lembrasse de um detalhe de uma nova estória. Incomodava-me não fazer parte da existência que Ana ia criando, e incomodava-me acima de tudo a maneira como Ana sismava em não perceber um pintelho que fosse da minha frustração. Lançava uma ou outra palavra, normalmente um adjectivo, e era o suficiente para eu começar a subir o tom de aspereza. Gritávamos por uma ou duas horas, íamos cada um para cada canto da casa. Ela a chorar, triste por não me perceber, eu a chorar, com raiva por ela não me perceber. Depois, quem sabe meia hora mais tarde, normalmente, um de nós ia ter com o outro, abraçávamo-nos por dez minutos e fazíamos amor do mais intenso possível, sem nunca falar. Não voltávamos a abordar o assunto, talvez na esperança de que não nomeado talvez não existisse. Talvez tivéssemos perfeita consciência de que nunca nos conseguiríamos entender.

            Houve também fases em que Ana, imagino por rebeldia, não contava uma única estória, não referia uma vez que fosse nenhum dos seus amigos. Caíamos então, eventualmente, num silêncio estranho e desconfortável. Era uma merda. Ao pensar e me contar esta minha própria estoria começo a sentir um bocado de pena. Não de mim nem de si, mas pena de termos sido tao infantis. Claro que agora, tantos anos, uma pança e filhos depois, a matemática parece incrivelmente simples. Viajando no tempo e vendo pelos olhos de um recém adulto era algo inexplicável…

            Como Acabou

 

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O grupo de Ana facilmente se definiu, e não passou muito tempo até Ana ter os seus amigos de Vale de Cambra em segundo plano. Não sei se era o que eu via, ou se era a realidade. Talvez eu me quisesse sentir em segundo plano, talvez eu precisasse de algo para lutar, não sei. Talvez eu me quisesse pôr em segundo plano para alimentar os meus medos e receios. Talvez é uma palavra que na altura nunca usava. Tudo eram certezas, de nada valia a pena duvidar senão a maneira como Ana tinha mudado…

            Claro que há sempre alguém que aparece nestas situações para nos deixar a sentir ainda pior. Neste caso, foi Fausto. Fausto era um colega de turma de Ana que fazia parte do seu grupo coeso e indestrutível de amigos. Cedo Ana aprendeu a não falar nele, imagino por perceber como me deixava. Cedo, também, as minhas paranóias aumentaram em relação áquele trinca-espinhas. Era uma arma demasiado fácil de usar. Mesmo que não fosse, que poderia eu fazer quando, acabado o ano e estando nós nas férias de Verão, Ana recebia uma carta dele a cada três ou quatro dias? E que poderia eu fazer se descobri que Ana por semanas o encobriu?

            Estávamos em sua casa. Ana tinha ido buscar limões para fazer uma limonada quando o carteiro chegou. Vi aquele nome escrito num envelope e a minha adrenalina disparou. Peguei na carta e fechei-me no quarto-de-banho, consciente de que aquilo que estava a fazer era ridículo. Ou seria? Abri a carta, ouvia os passos de Ana no corredor, a porta a ranger. Começei a ler e palavras como saudade e adjectivos foleiros povoavam quase cada linha. Tremia como varas verdes. As minhas mãos aguentavam com dificuldade o papel que era vítima das minhas lágrimas. Hoje posso admitir… na altura, das dezenas de vezes que chorei por causa de Ana, dizia-me que era de raiva, mas pelo menos dessa vez, em que dei corpo ao meu ciúme e passei a última barreira, chorava também, ou especialmente, de tristeza.

            – Que é esta merda? – perguntei, com a carta na mão. Ana espremia um limão na sua cozinha. Lembro-me como se fosse hoje… Tinha um vestido amarelo e um laço da mesma cor no cabelo. Estava um calor quase insuportável, mas o Vento, que se ondulava através dos azulejos castanhos, emprestava um ar harmonioso e fresco à sua face. Essa mesma face quedou-se por uns segundos a olhar para mim, e apercebeu-se do que se estava a passar.

            Não vale a pena pensar na conversa, ou discussão, que tivémos. Estava a acabar aquilo que tinha vivido por um ano. Ana gritava, dizia qualquer coisa acerca de eu ter violado a sua privacidade e ser um maluco, eu gritava de volta, dizendo qualquer coisa acerca de como ela nunca tinha sido digna da minha confiança. E acabou…

            Passei o resto das férias a rir às gargalhadas. Fazia tudo por não pensar nem ouvir falar de quem me tinha partido o coração. Via um amigo em cada estranho e uma amante em cada mulher. Os meus dias desapareciam debaixo de um sentimento de se viver a mil à hora. Tudo para encobrir o pedaço de mim que tinha perdido. Era jovem e estúpido, e isso deitou tudo a perder. Acho que éramos demasiado parecidos. Demasiado intensos para podermos resultar. Nunca tínhamos água para pôr na fervura, nunca tínhamos a calma necessária para apenas existirmos. Foi com se tivéssemos vivido toda a nossa existência juntos naqueles doze meses. Encontramo-nos no Porto dezenas de vezes, fizemos amor centenas de vezes, discutimos eternamente. Existíamos naquilo, vivíamos daquilo. Vivíamos de toda a loucura e sensações com que nos presenteávamos, e isso acabou por nos esgotar. Amei, como amei. E sim, foi o amor da minha VIDA, mas esgotou-se. Nunca foi eterno, e nunca foi calmo. Daquilo que tivémos que nos destruiu, tivémos algo que nos fez sentir vivos e presentes. Tivémos um desenrolar de dias em que nada se sabia senão a frescura da língua do outro, nada se sabia senão dizer coisas como “amo-te” ou “vai-te foder”. Foram estes extremos que não conseguimos controlar. Se nuns momentos estávamos dispostos a morrer pelo outro, noutro estávamos dispostos a morrer por causa do outro. O meu coração bateu mais vezes consigo do que com qualquer outra pessoa na minha VIDA. Teremos apenas um certo número de batidas a oferecer a alguém? Teremos de gerir com calma e precisão aquilo que sentimos e como nos fazemos voar? Talvez seja isso, e talvez a estupidez da nossa adolescência tenha decidido experimentar bater o recorde de uma VIDA sem antecedente nem consequente, sem nada a não ser o permanente anseio da presença do outro…

            Foi assim que acabou, e foi isso mesmo que, passada a loucura do não querer pensar, me sentei em reflexão, e sorri por tudo aquilo me ter acontecido. Vivo hoje como nunca quis, mas vivo hoje feliz. Vivo hoje com uma calma que nunca imaginei que me assentasse tão bem. Pessoas em minha casa à minha espera que amo e me amam, e um presente que, ainda que parco em surpresas, me vai fazendo sorrir. Não vivo em desespero como o resto das personagens, mas com uma suave e prazeirosa sensação de dever cumprido pois, afinal de contas, ainda que não o tenha conseguido, almejei o infinito.

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