Desalinho [2009]Ficção

Godelieve

Não sei bem como começou. Ou porque começou.

Bem… Acho que consigo imaginar, supor… Mas fico na dúvida… Foi quando olhei para ela, foi quando falou comigo, foi quando a beijei… Quando foi?

Sei, suponho, onde foi. Ela apresentava-se, como era costume fazer, imperial, vestida a rigor, com o seu vestido longo, vermelho, sem costas. Conseguia vislumbrar umas costas alvas, um ou outro sinal para retirar a monotonia, linhas harmoniosas. Segurava uma taça de champanhe, com suas mãos cobertas por umas luvas brancas que acabavam perto do cotovelo, qual donzela do século vinte. Imagino que só lhe faltava um cigarro com boquilha e um pequeno sinal na face. Eu, aparentemente distraído, circulava pela sala, ora com Angelien, ora sem ela, ora conversando com este, ora conversando com aquele. O meu olhar pousava de quando em vez em si. Atraía-me aquela imagem, e dava comigo a questionar-me se não teria um qualquer ascendente árabe. Talvez eu próprio quisesse que assim fosse, numa tentativa de explicar o exotismo daquele rasgado olhar.

Sim, esse olhar. Foi talvez esse mesmo olhar que ofereceu à minha VIDA a maior reviravolta que conheceria. Eu falava com um qualquer director, aborrecido, fazendo meu olhar viajar entre os ricos candelabros pendurados do tecto bege trabalhado, rico. Tentava parecer interessado na conversa. Tarefa árdua. Num dos raros momentos em que tentava olhar para o meu interlocutor, para não o deixar a questionar-se acerca do meu interesse, vi, por cima do seu ombro, mais uma vez a… donzela. Apenas daquela vez, ela olhou de volta. Aquele olhar tomou conta de mim. Desloquei para ela o interesse que eu próprio sentia, e senti-me desejado.

Despachei o… director, e aproximei-me. Na mão, um licor beirão, que me deixava, eu gostava de imaginar, um aroma agradável nos lábios. Cerrei um pouco os olhos, cedendo ao instinto da sedução que nos impele a esconder um pouco de nós próprios, e falei. Custava-me chamar-lhe a atenção. Fazia-se difícil. Aproximei-me um pouco mais, toquei-lhe, suavemente, no cotovelo, e perguntei, cordialmente, quem era. O sorriso que recebi era devastador.

Fruto desta minha aproximação, consegui sentir o seu aroma… Nuvens? Não quero ser ridículo, as nuvens não têm cheiro. E se tivessem, como poderia eu saber? Num pensamento eventualmente ridículo e adolescente, questionei-me se esse aroma não advinha do facto de eu próprio me sentir um pouco a levitar.

A conversa fluia, e sentia algo. Viajei até à pele de Angelien, e vi-me, elegante, com um smoking que me assentava perfeitamente, a falar com uma muito mais elegante mulher. Senti ciumes, vendo-me através do seus olhos azuis. Contudo, não sei porquê, isto apenas me impelia a continuar.

Viajei de seguida para a pele da minha… donzela, e senti desejo. Queria sair dali. Entre graças não fantasticamente conseguidas, surgiu a sugestão de irmos fumar um cigarro ao terraço. Negou, tinha de falar com este, com aquele, com o marido… Como cavalheiro que, geralmente, tento ser, afastei-me. O céu estava estrelado, fazendo jus ao mês em que nos encontravamos, e estava uma temperatura agradável. Saquei a cigarreira e tirei um Dunhill.

Estava quase a acabar o cigarro, preparando-me para, destruindo um pouco mais o mundo, o atirar sob o parapeito da janela, quando ela chegou. Senti uma espécie de vitória. Ela tinha voltado.

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