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Só a morte dos outros faz parte da nossa VIDA. A nossa faz parte da VIDA dos outros. E agora pede permissão para entrar na minha, novamente, 74 meses depois. Digo-lhe que estamos fechados mas ela tem chave mestra. Diz que estava para vir há algum tempo mas esteve a confirmar algumas coisas. Não pergunto o quê, finjo saber. Tento argumentar mas sinto-me falso em dizer que é cedo, porque ainda ninguém viveu para sempre. Ela diz, simpaticamente, que percebe, que percebe… mas eu vejo que se distrai ao ouvir-me, olha para o lado, parece fazer uma lista na mente. Com o Amadeu, provavelmente, em estado de não ter estado de dignidade ou falta dela, faço-o por ele, e aceito que venha, pois não há cabimento em rejeitar o inevitável. Peço-lhe só que espere por mim, só um bocadinho, só umas… quarenta e tal horas. Estou a caminho, Vô! Num autocarro que rasga as florestas verdes e densas da Costa Rica, debaixo de um céu azulado de lua cheia, estou a caminho. Se conseguires falar com ela diz que eu já venho. Só tenho de apanhar o autocarro amanhã para o aeroporto, voar para os Estados Unidos, daí para a Inglaterra, daí para Lisboa e depois é um comboio até aí acima. Mas pede-o com pinta, com calma, não faças choradinho. Se ela for teimosa, aceita, não quero ser a razão de discórdia, o tempo é teu e dela. Vou pelo ameno caminho a olhar pela janela, não me apetece ler. Às vezes meto parte do tronco de fora e sinto o Vento que talvez nunca mais sintas. Tento lembrar-me de histórias nossas. Estás sempre zangado nelas, mas isso é a minha memória de puto que só vê o trágico e não vê a brincadeira. Eu, o Bruno e o Leandro a escapar de gatas do teu quarto com o cinto a estalar no chão, para onde apontaras. Os mesmos três na parte de trás da carrinha de caixa aberta em pé, debaixo de um cobertor castanho, a fingir que somos um frigorífico, e tu a parar para nos dar um berro. Nas vindimas a comer as uvas em vez de as guardar, a lançar cachos uns aos outros. Tu a ameaçar que íamos a pé até Vale de Cambra e os putos, de orgulho vestido, a mandar-se estrada abaixo. Ganhámos essa, Vô. Fizeste bluff, nós cobrimos, e depois lá tiveste de aparecer de carrinha. Os copos de champanhe quanto ninguém estava a ver, a audição selectiva, as piadas do “Tu de quem és” ditas sempre como se fosse a primeira vez, as boleias para as explicações… “Para onde é?” “Para a esquerda.” “A esquerda?” perguntavas, a apontar para a direita com o braço esquerdo. “O teu avô queixa-se que tu dás-me beijo a mim mas a ele só apertas a mão.” Não sei se era mentira ou não, uma jogadinha da avõ, talvez, mas não quis saber. Nunca tendo tu sido muito afectuoso guardei essa frase e nunca mais te dei a mão para te cumprimentar. Vou aprendendo, mas vou falhando também. É curioso que, por vezes, só falhamos se tivermos tido uma ideia que não concluímos. Porque é que eu me lembrei que seria uma boa prenda os netos levarem-te a ver um jogo do Porto e nunca o fiz? Não tivera eu a ideia e teria falhado em menos uma coisa. Ainda por cima soubeste disso, e um dia disseste qualquer coisa, com palavras de quem não estava interessado e jeito de quem já lá estava. Mas nunca aconteceu. Desculpa. Vou dar o melhor para não voltar a falhar, e quando assim não o fizer vou lembrar-me de ti e pedir-te desculpa outra vez.

Aqui vou, Vô. Disseram-me que tens um, dois, três dias. Se puderes esperar, espera só um bocadinho. Se ela quiser mesmo que vás, tudo bem, não fico chateado. Se ainda aí estiveres quando regressar a este lado do Atlântico, que me sussurres ao ouvido, numa noite qualquer, o que lhe disseste.

A Caminho

Costa Rica

19.45, 2ª, 30-1-18

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