Textos

De Volta

De volta. Ou a caminho, a cruzar os céus. Descobri que o elástico que te roubei trouxe-te contigo e vou cheirando de vez em quando. Tento refrear-me para não se esgotar. Penso se devo arranjar e outro para não o contaminar com o meu próprio cheiro e refrear os nossos encontros a, sei lá, dia sim, dia não. Mas depois penso que talvez estivesse sempre a pensar em sentir-te, e talvez o melhor seja exaurir tudo porque, na verdade, não te trás até mim, mais mostra-me que não estás por cá nem eu por aí, outra vez.

Esta vinda foi das decisões mais ambivalentes que já tomei. Pois se, por um lado, não me arrependi de ter vindo, por outro não gostei de o ter feito. Fiz bem em ter vindo mas foi difícil. Em conversa anteontem num jantar em minha casa eu dizia que, geralmente, fazer o correcto é fácil. E alguém me corrigiu, o Filipe ou o Paulo, não me lembro, dizendo o contrário. Mantive a minha opinião. Geralmente é fácil. É quase tudo o que fazemos – o que está correcto. E não andamos em constante agonia por o fazer. Pois não?

Quando o meu pai me disse que o meu avô tinha dois ou três dias perguntei-lhe o que queria que eu fizesse. A dúvida atravessou-me mas faria o que me dissesse sem hesitar. Provavelmente o mesmo que fiz mesmo que não se pronunciasse.

Há pouco mais de meio ano recebi uma mensagem do Albert, com quem vivi na Finlândia, em Erasmus. “Temos de falar. Tenho más notícias sobre o Kid.” O Kid era o Alex, que também viveu connosco no segundo semestre. Era dois anos mais novo que o Albert e dois mais novo que eu, mas mais do que isso tinha uma atitude por vezes encantadoramente infantil e assim, lembrando-me eu do jogo da Master System, nomeei-o “Alex Kidd”. Quando liguei ao Albert descobri que o Kid ficaria Kid para sempre. Uma dor de pernas levou-o ao hospital e passado uns dias descobriu que tinha cancro. Um amigo com cancro. Tinha de o ver. Mas valeria a pena? A Valentina dizia que ele estava fora, que não se apercebia de nada. Valeria a pena ir vê-lo se ele não sabia que eu lá tinha estado, se ele não tinha sentido a minha presença? Além disso estava entre edições de livros e não tinha muito dinheiro para uma viagem de última hora a Barcelona, pelo que remoía. Até ter ido a Torres Novas apresentar o livro, jantar, apanhar uma bebedeira, chegar à cama com a Graciete e chorado meia hora. Ia vê-lo. Mas já não fui a tempo. E disse-me também a Valentina, que o fora visitar da Itália, que da última vez falara com ele e o meu amigo, de olhos fechados, levara a mão da minha amiga aos seus lábios. Podia ter sido eu também. Que fosse só um segundo, e que eu fosse só mais uma pessoa que ia ali prestar um tributo à sua existência. Mas eu assim não o quis, e assim lhe falhei. E aí aprendi a lição de que, em situações destas, uma pessoa tem de ir. O exercício de pensarmos de que é que nos podemos mais facilmente arrepender é valioso. E por isso digo que, mesmo que o meu pai dissesse que era melhor eu ficar provavelmente teria ido. Porque ainda tinha a oportunidade, não tanto de ver o meu avô, mas de que ele me visse a mim.

Passei uma hora no Sharkies e comprei o voo – que o meu pai pagou, sinto-me obrigado a dizer – para o dia seguinte, era o melhor que podia. Fui para a paragem de autocarros e lembro-me de estar com a mão direita numa barra que nos auxilia a entrada, o pé direito na primeira escada, a ver a rua quente à minha direita, a praia lá ao fundo, a tentar lembrar-me de histórias do meu avô. Fiz a viagem de sete horas de Tamarindo até o aeroporto, escrevi, cheguei às nove. Daí um autocarro para casa do Mário, um jantar, um colchão numa sala e algumas chamadas não atendidas e mensagens da Graciete a dizer “Tenho notícias”. Foi a melhor maneira que ela encontrou de me dizer que o meu avô tinha morrido sem mo dizer por mensagem. Depois liguei ao meu pai. “Queres que esperemos por ti para o funeral?” perguntava, incerto. “Hum… não, pá… vocês são muitos, eu sou só um…” respondi, ao mesmo tempo dando-me conta da minha própria incoerência, pois no dia anterior, quando estava naquele autocarro a fugir de onde era suposto ir, a pensar no longo caminho que tinha pela frente, sentia uma leve indignação face à possibilidade de o meu avô morrer mais cedo e não esperarem por mim para o funeral. O meu pensamento estava doente, por momentos. Pois além de eles serem muitos, eu ia por quem? Já não ia pelo meu avô, e não ia tanto por mim, por não dar valor às palavras de um padre qualquer. Ia pelo meu pai, pelos meus tios, pela minha avó, primos, mano, mãe… um pouco e tudo por este elemento estranho e bonito que é esta amálgama de almas a que chamamos família.

Apanhei o avião até Houston, daí para Inglaterra e cheguei a Lisboa. Articulei-me com uma boleia paga no Facebook e mal saí do aeroporto estava a caminho de Santa Maria da Feira, onde cheguei de noite e onde a Graciete veio buscar-me, com a surpresa de aparecerem também os meus pais e irmão. Como o meu avô ia para uma capela, apesar de não ter chegado a tempo do funeral, não lacraram o caixão para que eu pudesse dar a minha despedida. Pensava que íamos directos mas só fui na manhã seguinte.

Estava frio mas o céu estava azul. Acordei ainda muito cansado pela falta de sono nos voos e a diferença de fuso horário e fui com a Graciete ao cemitério de Vila Chã, onde já nos esperavam os rapazes da funerária. Segui o mais alto, ele entrou na capela, ao fundo, à esquerda, abriu o caixão, depois as toalhas que envolviam o rosto do meu avô e saiu. Entrei e ali estava tudo o que ele habitara. E ali estava eu, a olhar para ele, sem saber bem o que fazer. Dava-lhe um beijo? Não. Quando o meu avô materno morreu em 1997 dei-lhe um beijo na testa e apesar de beijar aquela pele fria não me ter traumatizado não foi algo que eu quisesse repetir. Passei-lhe a mão pelo cabelo, pousei as minhas mãos nas suas, olhava para ele. Mas ele já não estava ali. O meu pai chegou e forcei-me para ficar mais um bocado. E depois disse o adeus final.

Geralmente festejávamos o aniversário da minha avó em Março, mês em que fora registada. Mas a Lúcia fazia anos nesse mesmo dia, pelo que nos juntamos todos em casa dos meus pais onde jantámos, partilhámos algumas histórias e os mais velhos pensavam no futuro próximo em relação à minha avó. Passei o fim-de-semana todo em Vale de Cambra, voltei a São João da Madeira.

Passou um e dois dias, e o inchaço descomunal no olho com que tinha acordado quando soube do meu avô foi diminuindo, fruto de umas gotas com antibiótico que uma farmacêutica no aeroporto me vendera. Mas o inchaço que tinha na mão direita foi aumentando e enquanto eu equacionava ir ao médico, era praticamente obrigado a fazê-lo por quem gostava de mim. Fui na Quarta ao fim da tarde a um médico internista, que disse que provavelmente não seria nada mas deveria fazer análises para despistar lupus, artrite reumatóide e outra coisa qualquer. Não foi uma boa sensação imaginar-me com lupus, a mina VIDA ia mudar um bocado. Artrite também não seria uma boa escolha. Sem me preocupar demasiado por perceber que era só um despiste, saí do médico com uma receita para cortisona e uma seringa de adrenalina caso voltasse a ter inchaços e um deles fosse na garganta e não pudesse respirar, por exemplo. E fiz as análises, e passou mais um dia, e outro… e eu a sentir que não devia estar ali. Pensava na viagem e que já era pequena para dar um livro e agora ainda mais pequena seria… e num momento sentia-me egoísta por estar a pensar em mim, apenas para me dar uma abébia logo de seguida… pois tento não me condenar muito por ter um pensamento mais egoísta. É a maneira como concilio estes pensamentos e vontades com outras que mais merece auto-condenação ou aceitação.

A verdade é que parecia que estava num sonho. Estava tão longe de onde me tinha imaginado que parecia que faltava uma silhueta de realidade ao que vivia. Claro que os beijos da Graciete e as palavras com os meus pais e os jantares com o meu irmão tinham todos uma forma palpável e definida. Mas os sonhos também o parecem ter até nós pensarmos neles um bocadinho depois.

E veio Sábado, o aniversário da Graciete, que passámos em Lisboa, não sem antes passarmos na Nazaré porque ela queria ver o mar. E hoje acordámos às seis e meia, fomos para o aeroporto, despedimo-nos… desta vez sem lágrimas do Kidus, e voei. Ouço agora Bon Iver, sentado no lado do corredor, numa companhia que insiste em fazer-me passar fome… daqui a nada já estou onde era suposto estar, e daqui a um pouco mais de nada já regressei.

A sobrevoar um país qualquer centro-ameicano

20.12, d, 12 de Fevereiro 2018

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