Opinião

Apropriação Cultural

[Excerto do meu próximo livro, referente a uma viagem à boleia da Cidade do Panamá à Cidade do México em 2018. Livro a sair em 2019. Entretanto podes comprar os meus outros livros de viagem em www.daquiali.com]

Mas acabámos por falar sobre apropriação cultural e aí não foi uma questão de querer debater por debater mas uma de não conseguir, mesmo, encontrar sentido neste conceito. Ciente de que escrevo um livro que permanecerá estático no tempo sobre um tema em constante evolução e numa era de progressiva consciencialização, oferece-se-me dizer que, com todo o progresso que tem havido em relação a direitos humanos e mesmo um maior respeito inter-pares que temos vindo a ver veio também uma onda mais negativa, que é aquela que confunde o sentimento com o facto. Há grupos de pessoas que nunca foram ouvidos e descobriram uma voz recentemente. Essa voz deve deixar as suas palavras ecoar bem alto para calar os históricos grunhidos da opressão mas é imperativo que estas palavras que ascendem não resvalem para os grunhidos contra os quais lutam. Se os grunhidos forem aparecendo vão matando, lentamente, a credibilidade que as belas vozes foram ganhando. Muitas vezes uma opinião, ou até um sentimento, muda de roupa num instante, tira o macacão e veste um fato e, sem que demos por isso, torna-se num facto e para as demais pessoas, aquelas que valorizam a beleza do processo argumentativo, torna-se mais difícil perceber quem é que está a dizer algo que valha a pena ouvir. Sinto isso com o tema da apropriação cultural. Duvido que o rasta de sardas irlandesas use assim o cabelo porque quer ofender o rastafarianismo; duvido que a miúda que vai com o seu colchãozinho para mais uma aula de ioga tenha algo contra a preservação da cultura indiana; duvido que um rapper norte-americano branco tenha escolhido este estilo de música com o objectivo de denegrir os afrodescendentes desse país.

Lançando-me num claro oximoro com tal afirmação, considero-me um quase-fundamentalista da palavra e acho que os seus significados só devem mudar por natural evolução ao longo dos tempos sem advirem de um grupo que decide o seu significado mas de uma origem global, quase perdida. Sendo a palavra a última saudável ferramenta que temos para nos entendermos parece-me vital proteger o seu significado. Assim, o acto de ofensa vem descrito como “fazer mal”, “magoar”, “injuriar”, “desconsiderar”, entre outros sinónimos. Apesar de não implicar intenção, analisemos o caso em que uma mulher francesa usa um quimono em quatro cenários diferentes: no primeiro ela usa-o porque acha bonito e, quando passa uma senhora japonesa na rua a japonesa pensa “Ah, que bom, apreciam a indumentária do meu povo”; no segundo a senhora do Japão sente-se ofendida “Porque é do povo dela e a francesa não percebe nada da sua cultura”; no terceiro a francesa pode pensar algo como “Eu vou usar o que eu quiser, não curto japoneses ou chineses ou lá o que eles são mas até acho isto giro por isso que se foda” e a japonesa não se sentir ofendida e, finalmente, no quarto há intenção de ofensa e ofensa sentida. É difícil aqui perceber onde é que está a ofensa mais exactamente e dá a entender que o potencial ofensor só pode ficar bem numa das quatro situações, o que não me parece fazer sentido. O que me faz sentido é ver a ofensa como tendo dois sentidos. E, como tal, há uma responsabilidade do lado do potencial ofendido também. Estou certo que algumas pessoas lerão isto e pensarão que estou a responsabilizar a vítima, como quem responsabiliza uma pessoa violada por vestir-se provocadoramente. Não. A pessoa tem algum poder de escolha na maneira como sente, ou não, a ofensa. Pode relativizar ou pode, activamente, procurar uma maneira de ser que lhe permita ser superior a esse tipo de sentimentos. Falo com a noção de que não somos robôs totalmente programáveis mas também com a noção, tanto teórica como de experiência própria, que é possível nós irmos abdicando do orgulho e não nos sentirmos ofendidos. Se, num bar qualquer, eu conhecer alguém e essa pessoa começar a imitar a minha sopinha de massa enquanto se ri de mim para as amigas e eu perceber que a intenção é mesmo ofender-me, não me vou ofender na mesma. E sim, eu sei que eu sou eu e que lá por eu ter uma determinada maneira de ser as pessoas que não a têm devem ser respeitadas também. Só gostava de ver mais conversas, como eu tento oferecer, em relação a como nós podemos aprender a lidar com o mundo que nos habita e aquele que habitamos em vez de sobre como uma cultura dominante só deve vestir as roupas da sua própria cultura ou de outras culturas ainda mais dominantes.

Falo de “cultura dominante” porque o próprio conceito de apropriação cultural é uma fonte de dualidade de critérios. Se uma definição mais literal postula que tem que ver com situações em que uma cultura se apropria de aspectos de outra, uma outra definição, mais progressista, acrescenta que tem de ser quando uma cultura dominante, como brancos nos Estados Unidos, por exemplo, se apropria de aspectos de uma cultura dominada, ou historicamente dominada, como os afrodescendentes. Os argumentos andam à volta do facto de que a pessoa da cultura dominante usa aspectos da outra sem ter a bagagem que a outra tem. Como um afrodescendente que tem determinado estilo e isso é considerado “gueto” mas quando é um branco que o tem é considerado “fixe”. E eu percebo que o primeiro possa sentir alguma injustiça com isso, mas não acho que insurgir-se contra a escolha da indumentária é a melhor maneira de mudar aquilo que deseja mudar. Reitero que só é falta de respeito quando ele, ou ela, assim o vê, e reitero igualmente que não tem por que escolher assim o ver.

Paradoxalmente, quem usa como sua bandeira esta causa acusa os membros da “cultura dominante” como pessoas com certo privilégio. Porém, se atribuem à “cultura dominada” e apenas a essa o direito de se indignarem com apropriação cultural, não estão a enviar a mensagem de que o privilégio se cura com privilégio contrário?

 

O problema com a xenofobia e racismo é as pessoas não terem o mesmo acesso ao mercado de trabalho, é serem julgadas de maneira diferente, é serem indesejadas como membros de famílias de outras culturas, é serem atacadas, é serem literalmente insultadas e diminuídas. Preocuparmo-nos com alguém usar rastas ou um lenço árabe ao pescoço parece-me ser uma fútil tentativa de dizermo-nos a nós próprios que estamos a lutar contra o racismo, que somos importantes nesta luta. Perseguindo o direito das pessoas usarem o que quiserem não acaba com a discriminação. Mas se a discriminação acabar estou certo que já ninguém se importa com o que é que alguém veste.

One thought on “Apropriação Cultural

  1. Os glóbulos brancos são agentes da xenofobia de um corpo. São essenciais ao funcionamento e preservação do corpo. Sem os agentes xenófobos o corpo pura e simplesmente morre, como é sabido. O mesmo acontece com corpos grupais.

    A xenofobia é patológica quando há excesso de xenofobia (híper xenofobia) ou carência de xenofobia (hipo xenofobia). O desequilíbrio na xenofobia é uma condição patológica e deve ser encarada como tal.

    Há culturas patológicas que cultivam o excesso ou a carência de xenofobia patológica, como a tal cultura ocidental (híper xenófoba). E aí entras no domínio da patologia cultural, que consta da institucionalização de uma patologia comportamental, da passagem para a cultura de comportamentos doentes que os mantém e perpetua.

    As condições clínicas das culturas são decorrentes de desequilíbrios presentes na anamnese desses grupos. Por exemplo a híper xenofobia é pandémica nos grupos que estão fora do habitat da espécie humana. Uma doença típica de quem não está sequer no habitat humano. A saída do habitat da espécie tem efeitos nefastos na saúde comportamental dos grupos e indivíduos.

    Ou seja, a cultura é um elemento de saúde da espécie humana. Não é uma questão de opiniões, nem de ideologias e muito menos de crenças, é uma questão clínica.

    Há regras de saúde cultural, são elas que determinam a validade de uma cultura. A cultura é válida na medida em que é saudável, na medida em que apresenta as regras de saúde comportamental da espécie humana. Na medida em que cumpre o funcionamento da espécie humana, senão é apenas mais uma demonstração de ignorância e respectiva insalubridade, patologia, toxicidade…

    É uma chatice a realidade ter regras definidas por ela mesma, em vez de ser ao acaso das nossas vontades 😉

    Abraço

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