Desalinho [2009]Ficção

The OC

Vivo com uma maldição que me atormenta dia após dia. Cada frase destas que escrevo foi escrita três ou quatro vezes, para ter a certeza que fica bem. Quando saio de casa, caminho uns passos, o coração bate acelerado. Chamo-me à razão, não consigo. A cada passo que dou sinto-me mais nervoso e inquietante. Nervoso. Quando consigo caminhar mais que vinte metros, o bater desenfreado do coração é acompanhado por umas gotas de suor na testa. Tenho de voltar para trás, e confirmar se realmente a porta ficou bem fechada.

Não tenho quem me consiga ajudar. Esqueci psiquiatras, psicólogos, esqueci tudo, pois de tudo já tentei, sem qualquer resultado.

Os meus pais começaram a perceber quando, era eu criança, não conseguia comer nenhum prato que não estivesse devidamente organizado. Se uma ervilha tocava no arroz, era para mim impossível comer toda aquela mistura lamacenta. O meu pai, não percebendo algo que eu próprio não percebia, batia-me, magoava-me, deixando marcas ainda mais profundas em alguém cada vez mais marcado. Em dias em que estava mais irritado, enfiava-me a comida na boca, acabando por me ver vomitar mesmo à sua frente. A minha mãe percebeu mais rápido que era algo que não mudaria, e fazia por me deixar tudo separado. Apesar de tudo, foi a altura em que fui mais feliz, já que se manifestava apenas em momentos que não influenciavam a minha VIDA. Apenas nas refeições. Quando comecei a não conseguir comer com os talheres comuns da casa, infestados de gigantes e patológicos micróbios, e quando a minha mãe descobriu na minha mesinha de cabeceira um par de talheres que levava para a cantina da escola, começou a preocupar-se mais. Levou-me a uma série de terapeutas, e quando viu que, com o passar do tempo, eu apenas piorava, levou-me a um… bruxo. Tentou tudo o que pôde, acreditou-se em qualquer alma que lhe oferecesse esperança, tudo caindo no vazio do nada que era a minha transformação.

            Isso fez com que tenha muitos poucos amigos, nunca tenha conseguido ter uma relação íntima com ninguém, e com que nunca tenha beijado ninguém. A proximidade é algo que vejo como impossível e assustador. Vejo as pessoas como portadoras de um sem número de doenças, unidas com o estranho objectivo de me fazerem como eles, conspurcado e sujo. A medicação ajuda, mas não muda. Ajuda, mas não muda. Nada me muda.

            As obsessões multiplicam-se e são estúpidas, girando a maior parte acerca duma incerteza constante que se abate sobre mim. “Terei fechado bem a porta? Estará tudo limpo e imaculado como preciso que esteja? Está qualquer coisa que eu faça bem feito?”. O resultado destas estúpidas obsessões leva-me a confirmar tudo um sem número de vezes. Não o faço sempre em números ímpares, ou um número certo de vezes, como tantas vezes se vê nos filmes, faço apenas o número de vezes que acho necessário para confirmar realmente algo que podia ser confirmado à primeira. Tudo é muito frágil e difícil de confiar, cada gesto pode piorar tudo, pelo que a confirmação, que por vezes sinto como infinita, é algo sem o qual não consigo viver.

            Tudo isto leva-me a evitar todos os locais públicos onde possa ser humilhado, onde possam reparar que não sou aquilo que chamam de normal, que não me contento nem tenho prazer em ser um portador de vírus.

Algo com que os especialistas me ajudaram foi na escolha de uma profissão que se coadunasse com o meu problema. Giro o stock duma grande empresa que tem resultados brilhantes desde que cheguei. Nada se perde, nada se estraga, nada sai de validade, nada se confunde. Nada se confunde senão eu próprio, sem conseguir perceber como podem as pessoas contentar-se com a constante falibilidade, e como me podem aplaudir por apenas fazer o meu trabalho bem feito. Porém, estas obsessões apenas se diluem oito horas por dia… sendo a única altura em que me sinto como uma pessoa entre tantas outras, com os mesmos problemas das outras, e não como um problema.

            Mas oito horas por dia são apenas oito horas por dia. O que é o resto? O que é sentir que não tenho VIDA própria e que os receios infindáveis me levam a não me envolver com quase ninguém? O que é sentir que é como se outra pessoa habitasse dentro de mim e me dissesse constantemente o que tenho de fazer?…

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