Desalinho [2009]Ficção

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Dizem que a minha reacção não é normal. Que estou em profunda fase de negação. Que outras fases virão, como a raiva, e outras coisas assim de que não me recordo muito bem. A primeira pessoa que me falou nisto foi o meu médico, com um profundo olhar de consternação. Depois a minha família, tendo ouvido o meu filho,  psicólogo. Quando digo que está tudo bem, olham para mim com um sorriso triste. Ai sim, por vezes entro em raiva, não pela minha condição, mas pela falta de compreensão. Como se eu fosse obrigado a sentir-me miserável por saber que morrerei no prazo de um ano. Não consigo deixar de sentir que o que devo sentir é o que é suposto. Não consigo perceber isto… Virão as emoções e sentimentos catalogadas em frascos?… “Em caso de cancro, deve ter este sentimento durante três semanas, altura em que deve subir de dose”…

            Mas… vejamos…

            Tenho sessenta e dois anos. Um cancro. Não há grande volta a dar. Querem que entre em tratamentos, que me podem prolongar a VIDA até mais um ano, ano e meio, mas que me obrigarão a passar a maior parte desse tempo em hospitais. Vejamos… tenho sessenta e dois anos, três filhos que tenho a grande sorte de terem saído à mãe (fantásticos), quatro netos brilhantes. Um deles sai ao avô, mas isso, claro, também me deixa contente, pois o Mundo precisa de pessoas que o abanem de vez em quando. Tive a sorte de passar a VIDA profissional num emprego que me permitia estar com pessoas, sorrir para elas, receber sorrisos em troca. Essa sorte permitiu-me chegar a casa dia após dia com um sorriso nos lábios, salvo as raras excepções a que a condição humana está sujeita, de dias menos bons. (Que seria de nós com a terrível sina de uma VIDA permanente feliz?…). Tenho um leque de amigos enorme. Conheço meio mundo. Fiz porcaria que chegue na VIDA que me permitiu aprender com cada erro, mas que também me permitiu sentir-me vivo… Mais importante, deixarei todos em boas condições, a minha mulher com a estabilidade que precisa, e com a beleza dos seus cinquenta e cinco anos num ponto glorioso. Não me posso queixar. Nada. Daí que…

            – Não sei como lhe dizer isto. O seu cancro foi descoberto muito tarde, e agora não há como reverter a situação – disse o jovem médico, com um olhar de alguém mais velho e triste.

         – Como assim? – a surpresa pouco realmente o foi. Sempre fui bastante optimista, mas algo ali me dizia que as coisas não estavam como deviam estar. De qualquer modo, a pior notícia já tinha sido dada – “Você tem um cancro”… Quatro palavras que me ofereceram um ponto final, nem por isso glorioso, mas nem por isso humilhante, nesta minha caminhada.

         – Podemos, com tratamentos, prolongar um pouco o seu tempo de VIDA, caso contrário, é possível que faleça num ano.

         – E com os tratamentos?

         – Dois anos, dois anos e meio. Mas são um pouco custosos, e tem de passar muito tempo no hospital. De qualquer modo, recomendo vivamente que os faça – sorrio.

            – Doutor, não se preocupe. Não precisa de se sentir triste por mim, nem de usar termos como “falecer” em vez de “morrer”. A verdade é que vivi uma VIDA que muita gente desejaria ter vivido. E agora que sei quando vou morrer, posso dizer, com toda a certeza, que partirei feliz e satisfeito – levantei-me.

            – Sr. Rodrigues, espere, temos de falar dos tratamentos.

         – Porquê, está doente? – perguntei, com um sorriso. O seu olhar adquiriu o estatuto de incompreensão – Estou a brincar consigo. Sabe, acho que prefiro continuar o pouco tempo que me resta a viver como sempre vivi, do que agarrado com todas as forças a uma corda que sei que vai partir mais dia menos dia. Muito obrigado por tudo – levantei-me e deixei o senhor doutor com a sua incompreensão, e com a minha própria incompreensão em relação à sua. Bem, sinceramente, nem por isso. Até compreendo o seu ponto de vista, que é o de toda a gente sempre, mas… não tenho necessariamente de o aceitar…

 

            Saio do consultório, está frio, muito frio, e por isso me dirijo ao Arcádia, onde me sento com um par de amigos e peço uma meia de leite quente, muito quente. O olhar deles é de solidariedade, e peço para não se preocuparem. Sinto as suas vozes baixarem de volume, não porque realmente o fazem, mas porque vôo, quase sem o saber, muito para dentro de mim. Penso na minha incompreensão acerca da incompreensão de toda a gente acerca de mim. O que será que tem a VIDA de tão estranho que faça toda a gente querer não vivê-la pelo maior número de anos possível? Sinto como se estivesse num campeonato, e quase se como o facto de ir morrer provavelmente aos sessenta e três anos faça de mim alguém que batalhará pelo penúltimo lugar. Que estranho…

Se quereria viver até aos cem? Pois sim, se com esses quarenta anos pudesse ter tudo o que poderia ter de mim. Mas arrastar-me pelos dias, ser relembrado constantemente do fim através da quase infrutífera tentativa de ter mais uma centena dos mesmos… Para quê? Para quê abdicar de um ano em pleno em que posso ir à praia sem me preocupar com consultas, em que posso dormir até tarde e comer o que quiser, em que posso fazer o que bem me apetecer? Sei que o meu fim será numa cama de hospital, e isso é das poucas coisas que me faz triste. Mas sei igualmente que tanto posso estar nessa cama de hospital uma ou duas semanas, ou quatro ou cinco, quem sabe mais, meses. A escolha é simples.

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