Desalinho [2009]Ficção

Onde Estás Quando Não Te Vejo?

         XY

Onde estás quando não te vejo? – ela pergunta-me. Admiro o que me rodeia. Um lago gelado, no final duma montanha coberta de neve.

            – Onde estás? – pergunto.

            – Na praia. Está quente – ouço. Num ouvido ouço-a dizer-me o quão longe está de mim, no outro chega-me Vidar Vel Til Loftárása. Não faço a mínima ideia do que os Sigur Rós me dizem naquele momento, cantando em islandês, mas sei o que ela me diz. Está longe, muito longe. “Onde estás quando não te vejo?” – ouço, novamente, badalando a pergunta no meu interior. Não sei, na verdade. Estou longe, mas onde é “longe”? Quando não me vês estou um pouco por todo o lado. Quando não te vejo, estou um pouco por todo lado. Percorro caminhos, sabendo que terei sempre um porto seguro, terei sempre um sítio onde chegar, e esse sítio és tu. Estico a corda e vou desaparecendo, com cuidado para não perder as migalhas de pão que guardam o caminho. Mas sinto que quanto mais longe estou, mais perto estou doutro sítio qualquer, ficando a saber, na verdade, apenas por breves instantes, onde estou quando não me vês… e ficando a pensar onde estarei, olhando os metros que me aguardam, tão perto, à distância de uns pequenos passos. Olho para trás e vejo as migalhas ameaçadas pelos esfomeados pássaros, que investigam se me deixarão, ou não, saber o caminho de volta.

            O pão na minha mão escasseia, e faço por deixar as migalhas com menos frequência, até que deixo tão de longe a longe, que me sinto perdido. Confio demasiado na minha memória, e arrisco um pouco mais, ficando na dúvida se poderei, algum dia, voltar a casa. A confiança estica-se mais que as migalhas, e penso na justiça que haverá de… confiar apenas na minha memória. Queria-te aqui, para me ajudares a não esquecer o caminho, mas não podes vir, e dou mais uns passos sozinho, deixando-te sozinha mais um bocadinho. Penso na justiça de te deixar sozinha mais um bocadinho, ou na falta dela… Penso em ti e no Mundo, nas vivências que me podem aguardar, e penso se terei de optar por alguma. Não quero ter de optar, quero ter-te a ti, quero ter o mundo, e dar mais uns passos em frente. Mas terei de optar? Será possível ter as duas coisas, ou será que uma invalida a outra de tal maneira, que uma vez com vontade de voltar, dê de caras com as gargalhadas cruéis dos pássaros de papo cheio?

         – Onde estás quando não te vejo?

            – Estou contigo, na mesma – ouço-me responder. Penso na resposta e questiono quem estou a tentar tranquilizar. Amb… Penso que, apesar de parecer bonita, romântica, a resposta acaba por ser um mero sucedâneo, uma espécie de faz-de-conta que sabe bem ouvir e dizer. Penso em como, efectivamente, a trago comigo, mas na diferença que é estender a mão e sentir a sua pele. Viajar nesta e aterrar nos seus lábios, que húmidos me beijam, quem sabe preparando um pedido silencioso de “Não voltes a ir…”…

Mas a eterna questão permanecerá a remoer lentamente, admitindo a confiança dum amor que perdura, buscando na sua própria longevidade, também, mais uma segurança de auto-suficiência. A questão aparece, e a compreensão do outro lado existe, mas a dúvida ao partir, tão tímida tantas vezes, dando razão à interrogação espalha-se na minha mente… perguntando-me se… se pode ter as duas coisas.

XX

         – Onde estás quando não te vejo? – pergunto. Estou na praia, sinto a areia quente nos pés, como um gelado e vejo um par de meninos a fazer castelos de areia. Está longe. Está num lago gelado, faz-me saber. Penso no significado latente, de eu estar no quente, e ele no frio, relembrando-me das vezes em que tivemos milhares de quilómetros entre nós. Custa-me, pois fico, e ele vai. Acho que me custa mais a mim, pois tudo permanece na mesma, mas sem ele. Para ele nada permanece igual e imagino o seu êxtase, conhecendo eu o seu gosto pela novidade, e a busca de algo novo. Mas sei que, de certa fora, tem de ir, e compreendo, por mais que me custe, por mais que não consiga evitar sentir as lágrimas salgadas passear na minha face, ao vê-lo partir. Sinto o vazio da sua ausência ainda que saiba que, no fim, voltará para mim, sempre. Não percebo onde vou buscar esta confiança, pois mesmo quando está comigo, os planos na sua mente do próximo sítio a visitar fazem-se sentir, ora num discurso exaltado, ora num olhar dispassarado. Custa-me não poder ir, e vejo-me com ele em cada sítio. E digo-lhe, quando chega, que a todos os sítios onde esteve, me levará. Não gosto quando diz que os sítios novos nunca acabarão, e que me levará a outros onde ele próprio não esteve ainda. Não gosto. Quero estar onde esteve, quero sentir que quando se relembrar dos sítios por onde passou, eu possa fazer parte dessas lembranças.

            – Onde estás quando não te vejo? – ecoa a pergunta.

            – Estou contigo, na mesma – o preenchimento que esta bonita frase que me dá é, infelizmente, efémero. Gosto de o ouvir dizer isto, mas não o posso abraçar e dizer-lhe que o amo. Não lhe posso tocar, não o posso beijar. Os dias passam, e ele chega, chega sempre. E com ele o sentimento de estar bem, de estar melhor. De saber que tudo o que amo, tudo o que aprecio, está à distância da mera vontade de estar.

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