Desalinho [2009]Ficção

Olívia

Banda Sonora

        Osiem

Sou uma velha porreira. Ou melhor, aparento ser uma velha porreira. Mas não sou. Há uma certa amargura que não consigo explicar, porra! Quer dizer, consigo explicar, pois sei muito bem de onde vem, mas não consigo descrever. Quer dizer, não consigo explicar… Não faço ideia. Levanto-me da mesa onde acabei de almoçar, sozinha, sacudo a cabeça, tentando fazer os pensamentos escoar, e lavo a louça. Sou uma velha porreira. Se é isso que chega à percepção de toda a gente, porque será que não o sinto dentro de mim? Sei o que querem dizer, mais ou menos… pelo menos em parte. Sei que, por exemplo, para eles, uma “cota” normal não tem este tipo de pensamentos que tenho, não tem as conversas com eles que eu tenho. Mas pensar… toda a gente sabe, pensar dói, e não é pouco. Pensar dói quando a VIDA não correu bem, não apenas num momento, mas numa série deles que transformam um futuro completo. Quando se toma a decisão certa, pensar não custa. Quando se toma a decisão errada, pensar é lixado. Mas acho que o pior é quando se arrepende de se ter tomado a decisão certa. Aí pensar custa muito…

            As amigas que tenho… Vejo-as, nos seus casaquitos de lã, com as suas dezenas de quilos que ganharam como prémio de casamento, as suas conversas pueris, o constante massacre que tenho de passar ao escutar o que toda a gente na Vila faz (porque voltei?). Não têm má intenção, acho eu. Mas ainda assim…

            Sou uma velha porreira. Mas estou sozinha. Quis o destino que tivesse, em tantas ocasiões, uma mistura de… pelo na venta e azar na VIDA. Pelo na venta, porque nunca assentei com o primeiro homem que me apareceu. Sempre dei alguma luta, como num jogo de análise. As minhas amigas, em parte, também, mas quando escolhiam… escolhiam. Eu quando escolhia, o mais certo era vir a arrepender-me, quando percebesse a peça que tinha. Ou quando, uma vez tendo escolhido, tinha a audácia de continuar a ser eu. Por isso agora não tenho um marido que me agride, não tenho um marido que se embebeda todos os dias, não tenho um marido que tem um sem número de amigas e goza comigo nas minhas costas. Mas… não tenho um marido.

            Daí o meu pensar. Sou uma velha porreira, mas que me interessa ser uma velha porreira? O gosto que sempre tive em ser diferente, em destacar-me das demais, em ser especial, foi-se diluindo paulatinamente com o passar dos anos. Nunca pensei pensar no que penso agora mesmo. Estarei a ficar doida? Isso também vem com a velhice… não, é mesmo verdade, estou a pensar que apenas quero ser como qualquer outra.

            Talvez o peso da solidão, ainda que sentido por uma cota porreira, seja demasiado massacrador, nos diga demasiadas coisas ao ouvido, e nos faça querer poder voltar atrás no tempo, e ter feito algumas coisas de maneira diferente.

            Sento-me no café. A Josefa diz que está cheia de sono porque o marido ressonou a noite toda. A Maria diz que o marido a vai levar a ver Lisboa pela primeira vez no próximo fim-de-semana. Olho para elas e penso. Na minha cabeça começa a tocar uma qualquer música de repente. Aquela… filha do João Gilberto… Bebel Gilberto… Já não as ouço e já não estou nos meus olhos, estou num plano acima, vejo-me como se duma novela brasileira fizesse parte. Ai, a banda sonora é incrível. Um narrador, baixinho, e “falando brasileiro”, sussurra:

            “Olívia ouvia suas amigas falando. Seus olhos entravam em conluio com seus ouvidos, fazendo sorrir sua mente por dentro. No fundo, todas as suas questões voavam janela fora. Sabia perfeitamente que o mundo precisava de pessoas como ela. Magnífica, uma juventude eterna, uma capacidade observadora como nunca ninguém conhecera, uma capacidade de espalhar o sorriso e aquecer as pessoas ao seu redor. Um ser que se sentia sozinho, mas que fazia com que todo o mundo se sentisse acompanhado. Um ser incrível, daqueles que os poetas descrevem.

            Nessa noite, Olívia chegou a sua casa, ligou sua música, não jantou. Preparou um chá de camomila, sentou-se no frio de sua varanda conversando com um cigarro, olhando o que passava em seu redor. Escreveu algo no seu milésimo bloco de notas, pousou a caneta, e bebeu seu último chá.”

Siedem

– Olívia, porque foi sempre tão extravagante ao longo da sua VIDA? – pergunta-me ele. Está sentado na sua cadeira, deslocada da secretária. Eu fumo um cigarro, com a minha longa boquilha. Estou de óculos de sol, deitada no seu divã.

            – Sabe, Dr., eu acho que posso não ter sido… – faço uma pausa, para que me pergunte o que quero dizer. Não pergunta nada. Dou uma passa no meu cigarro e olho ao redor. O consultório tem como paredes umas centenas de livros. A carpete é vermelha, parece ter dois ou três séculos, mas dá um ambiente acolhedor. Ele é velho. Uma das minhas companhias há mais de vinte anos – Não me pergunta o que quero dizer com isto?

         – Sim, claro, Olívia. Pensei que fosse continuar.

         – E ia, mas estava à espera da sua pergunta.

         – Olívia, não entre em jogos outra vez.

         – Sim, sim, o evitamento, já me lembro. Ok. Acho que posso não ter sido eu a extravagante. Sabe, um dia destes estava a pensar, a escrever as minhas notinhas, e cheguei à conclusão que todo o mundo é que é extravagante. Isto é, não tem de ser, mas é um conceito tão estranho… não acha?

         – A grande maioria dos conceitos são relativos, é verdade. Mas também é verdade que trazem consigo geralmente um significado aceite por toda a comunidade…

         – Sim, tudo bem. Mas o que eu quero dizer, é que olho para as pessoas, e vejo… A maioria dá-se ao luxo de não ser feliz. E eu arrisco sê-lo. Por isso é que as acho extravagantes, porque abdicam da única coisa que vale a pena ter – não sei se ele percebe o que quero dizer.

            – Mas porque acha que as outras pessoas não são felizes?

         – Bem, não digo que seja toda a gente… Mas por favor, está nítido, basta abrir um bocadinho os olhinhos, e ver o olhar das pessoas na rua. E eu, claro, estou sozinha, e às vezes custa… claro que custa, e questiono-me, e entro em paranóias, e essas coisas todas que o doutor sabe. Mas, na maior parte das vezes sinto-me feliz, porque sei que estou sozinha, mas estou bem, feliz. Além do mais, vivi uma VIDA preenchida, sei que está prestes a acabar, e não me arrependo de nada que tenha feito.

         – Está prestes a acabar?

         – Sim, o meu autor matou-me no próximo capítulo.

         – Matou-a ou vai matá-la?

         – Matou, porque ele já o escreveu… acho que está a escrever a coisa ao contrário. Tem a mania que é original… como se pode ser original com os milhares de mentes que andam por este Mundo fora? Já está tudo feito!

         – Não quer dizer biliões?

         – Não, não… estou a falar das que pensam por si…

         – Estou a ver… Mas adiante, continua com a ideia que a sua VIDA é um romance, Olívia?

         – Sabe, não é bem um romance, acho eu. Romances, tive muitos. Mas não sei se ele já os escreveu. Acho que para já o meu autor só escreveu o episódio em que morro, e agora este.

         – Então o que está a dizer é que o mundo, tal como o conhecemos, não existe?

         – Talvez não. Existe o mundo que ele criou… espere… sim, o nosso mundo existe, mas foi criado por ele. Repare, agora você tem uma flor no seu casaco, antes não tinha.

         – Como?

         – Foi ele que a pôs aí, agora mesmo, para me dar razão.

         – Mas Olívia, eu trouxe isto de casa.

         – Você pensa que trouxe. Mas adiante… o que digo é que o nosso mundo existe, mas vai sendo criado por ele. E talvez o mundo dele esteja a ser criado por outros escritor, numa senda interminável, e talvez o derradeiro escritor, criador, seja aquele a quem toda a gente chama de Deus… Não é giro?

         – É curiosa a sua teoria. Já a partilhou com alguém?

         – Hum… Acho que não o posso fazer. Acho que só consigo é que posso ser realmente quem sou, e dizer o que realmente penso, pois gosto da sua atitude. Claro que eu vejo no seu olhar uma expressão de profunda incompreensão, mas adopta uma postura neutra, e gosto disso.

         – É o meu papel aqui, e você sabe disso, claro.

         – O seu papel, sim, bem dito. Está a ver como está a começar a perceber o que quero dizer? O seu papel é esta VIDA que tem, criada por ele, através de mim.

         – Acha então ser a personagem principal? O resto do mundo vive através de si?

         – Estou a ver onde quer chegar. Não, não tem nada que ver com um egocentrismo desmesurado. É apenas a minha maneira de ver, e posso pensar assim, como eu quiser. No meu dia-a-dia não me acho superior, ou melhor que ninguém, e acho que, como não transformo em acções estes meus pensamentos, tenho o direito de ser assim, como você quer dizer mas não diz, egocentrista. Agora vamos acabar este capítulo, que o meu autor tem de fazer qualquer coisa.

Sześć

            – Olá mãe! – cumprimento a minha amargurada progenitora, por quem nutro eterno afecto, mas de quem sentirei eterna pena. Quem sabe a combinação de um sentido observador, com o facto de ter tido muito que observar no meu próprio lar tenha resultado nesta minha decisão de viver sozinha. Corrijo-me. Na minha decisão de não viver obcecada com não viver sozinha.

            – Olá filhinha, como estás? – pergunta, com aquele tom de tristeza que sempre me deixou um pouco irritada. Vejo na minha mãe as minhas amigas daqui a uns a anos, com a tristeza e as queixas como fonte eterna de conversa.

            – Estou óptima! – sinto a nítida diferença entre o seu tom e o meu. Penso e volto a pensar, e não quero dizer porque me sinto particularmente… óptima.

            – Ui filha, que alegria! Que se passa? – pergunta, curiosa. Se decidi não dizer a razão deste entusiasmo especial, sinto que foi um pouco tarde. Não lhe direi que estou interessada em alguém que vou ver esta noite. Usar na mesma frase palavras como “homem” e “noite” sempre deram a minha mãe, por um lado, falsas esperanças ao perspectivar um, finalmente, genro, e, por outro lado, repulsa com a maneira como certas pessoas – eu – se podem dar ao luxo de se divertirem sem pensarem duas vezes ou sem se irem confessar e purgar no dia seguinte.

            – Nada, Piedade – nunca entendi porque trato a minha mãe pelo seu nome tantas vezes… – Que queres que te – nunca entendi porque trato a minha mãe por tu tantas vezes… – diga… Está bom tempo, sou jovem – quarenta e sete? – e a VIDA é bela! – nunca entendi porque o facto de ver o melhor em existir me afasta tanto da “normalidade”… Não sei se ajuda o facto de me ver como um mero personagem… Talvez a VIDA seja mais fácil e leve se imaginarmos que outras mãos as guiam que não as nossas. Não gosto de pensar em deus ou essas tretas, mas dum qualquer escritor carismático e charmoso, da minha idade, envelhecendo um pouco acima da minha existência, ao mesmo tempo que eu, enquanto fuma cachimbo e bebe Licor Beirão. Olívia!! Como é possível que te sintas excitada a pensar num escritor inexistente que escreve a tua inexistente existência?! Certo é que sei ser estranho, mas…

[certa ideia não me sai da cabeça…]

            Quando termino a chamada, agradeço à Dona Manuela, que trabalha na secretaria do liceu onde trabalho, e vou dar a última aula, para depois ir para casa. Vejo a uma hora de distância um banho de imersão muito prazeiroso e os preparos dum jantar para o qual, sem querer, tenho algumas expectativas. Lanço para a cara dum estranho um sorriso tímido mas atrevido, ao sentir alguma vergonha do quão longe vou nos meus planos e ideias acerca do charmoso Eduardo, meu colega e professor de Português.

            Fecho a porta atrás de mim e a primeira coisa que faço é espalhar o perfume do senhor Ray Charles pela minha casa. Reparo nas paredes beges, escuras quem sabe pelo fumo do tabaco, e penso em mudar isto e aquilo… Deixo a minha bolsa da mesma cor das paredes cair no sofá da mesma cor da música que ouço e dispo-me. Ao som de Walkin’ & Talkin’, entro na banheira, levando comigo um copo e uma garrafa de Rosé Sul-africano, o melhorzinho. Encontro-me sem fuga possível, e a ideia que não me saía da cabeça toma conta de mim. Enquanto a banheira vai enchendo, deixo as minhas mãos percorrerem o meu corpo já denunciador da idade… imagino o meu escritor… alto, mãos poderosas e calejadas, olhos verdes e cabelo grisalho. Faço dos meus dedos as suas próprias penas, e massajo-me com calma e cuidado, adiando com sabedoria o culminar do prazer, o orgasmo que, quem sabe, me deixa mais perto do meu próprio criador por uns instantes. Mergulho bem fundo, tanto o meu corpo na água quente, como os meus escaldantes dedos dentro do mesmo e, imergida em tudo o que sou, permito-me afogar-me um pouco em prazer. Não foi longo, mas maravilhoso. Sorrio e mais uma vez sinto-me lançar aquele sorriso tímido. Não por sentir vergonha alguma em me satisfazer, mas por imaginar, com prazer, as caras das minhas amigas se lhes contasse como conhecia os cantos e recantos de mim mesma.

         X +2h30

            Meu deus, Olívia, meu deus!! Como é possível que sejas tão tonta?

            Felizmente nunca fui, ou se fui, desde há muito tempo que não sou, de me afundar em misérias e tristezas, preferindo levar, tanto quanto possa, as contrariedades com um sorriso. É por isso que, saindo de mim e vendo o que se está a passar, devo confessar que me desmancho a rir! Autor, meu querido autor, como me pudeste pregar uma partida destas?

            Vejo-me sentada, bela. Não pareço mais nova, tampouco mais velha. Não pareço nada mais, nada menos, do que aquilo que sou. Madura, bela, sedutora e sabida. O meu vestido vermelho não chega a ser provocador, mas arrancaria uns olhares de escárnio por parte das mais puras das almas. Uso na cabeça, quase como bandolete, os meus largos óculos de sol que nunca abandono. O meu queixo repousa na palma da minha mão direita, cuja extremidade aguenta um cigarro beijando uma boquilha negra. O meu ar… sinceramente não sei bem como identificar, ou definir o meu ar, sendo que sei o que sinto e vejo isso como algo que me impossibilita o distanciamento necessário para um julgamento mais preciso… Pareço atenta, quem sabe, mas com um leve toque de surpresa. À minha frente vejo Eduardo, que fala animado sobre o clima político fervoroso que se vive na actualidade. Volto a entrar em mim, já vejo o que os meus olhos alcançam, e acima de tudo sinto o que a minha mente não conseguiu antecipar. Facto é que vejo em Eduardo alguém muito bonito, simpático, mas que é um paneleiro de todo o tamanho! Como é que é possível? Que seja paneleiro, não me interessa, sabe o autor as coisas que já fiz e me fizeram, noutros tempos, mas como é possível que me tenha escapado tal facto? Os seus pulsos ondulam como quem faz tricot, fala como se precisasse de dizer as letras todas e estivesse constipado, e de vez em quando solta uns agudos que me fazem sentir um júri numa escola de canto para meninas… Vislumbro, na minha imaginação, os seus agudos no vidro do meu pobre copo, à beira do cataclismo vocal…

            Talvez para salvar o sagrado recipiente duma rachadela fatal, talvez para me ajudar, com um pouco mais de álcool, a esquecer esta surpresa, agarro o néctar, que bebo dum só gole. Ainda penso se lhe devo dizer, ou não, que estava interessada nele… pensando bem, ele pode até não ser p… homossexual, mas a verdade é que homens efeminados, por mais que possam gostar de mulheres, nunca me atraíram sobremaneira. E isso, naturalmente, faz com que a probabilidade de eu acabar na cama com ele seja parecida com a de ele começar agora a falar de futebol e gajas… Não vai acontecer! Sempre gostei de homens fortes e viris, que tentassem mandar em mim, mas sem realmente o fazer. Que se chateassem, praguejassem e berrassem, mas que passado meia hora estivessem dentro de mim a dizer que me amavam, ainda que não o fizessem. Infelizmente, este meu, quem sabe, estranho gosto por homens, fez com que não consiga arranjar ninguém, pois na altura em que vivo, no país onde vivo, a distância entre um berro e um par de estalos não é mais que uma nuvem e um aguaceiro. Quando um existe, ainda que a consequência nem sempre apareça, a ameaça está sempre presente. E sabe o autor o quanto eu estou disposta a me dar ao luxo de ser miserável…

            – Bem, Eduardo, está a fazer-se tarde, sabes? – sugiro, pensando ao mesmo tempo que, uma vez ultrapassada a surpresa e a desilusão, seria bom sermos amigos. Sempre adorei amigos gays!

            – Óóóó queeerida! – ai Eduardo, ai… – Já vai? – pá, desde o primeiro momento que te trato por tu e ainda não saíste dessa? Sinto-me começar a culpá-lo pela minha própria surpresa, quando ele não tem culpa nenhuma…

            – Olha… antes de mais, trata-me por tu, por favor, porque eu já te conheço, e vendo que és uma pessoa muito simpática e porreira, tal como eu, – sorrio – acho que não faz sentido que assim não nos tratemos. Depois, eu tenho de ir, sabes, é que estou um bocado cansada. Mas olha que adorei – blá blá e isso tudo…

            X + 3h30

         – Um café, por favor – peço ao simpático empregado, que me responde com um aceno. Estou na Brasileira. Como me sentia ligeiramente tocada pelo champanhe, decidi não ir de imediato para casa. Nem me preocupei com o facto de me poder encontrar com Eduardo, arranjaria uma desculpa qualquer. Creio que, na verdade, talvez esteja a antecipar um certo sentimento… A surpresa algo piadética que senti, as risadas que dei dentro mim… vejo-as, de certa forma, como uma possível escapatória para a tristeza e a desilusão que receio começar a sentir, uma vez que acalme. A minha mente leva-me para quando o meu querido autor me decidiu presentear com uma alma gémea, e a maneira cruel como a retirou de mim, e como desde então me resignei perante a ideia de uma impossibilidade em arranjar alguém. Acho que é impossível resignar-nos verdadeiramente com alguma coisa. Lado a lado com a resignação, caminha o sentimento de estagnação e morte. Talvez eu tenha simplesmente confundido as minhas palavras, tenha falhado como me exprimir, ainda que de mim para mim. Talvez usemos com frequência o termo resignação, quando no fundo o que queremos dizer é que continuaremos a procurar, mas já não estamos propriamente aos saltos no sofá perante a mais leve ideia de que possa correr bem… Enfim.

            X + 4h30

         A cama vazia é algo com que poderei sempre contar. Tento controlar a tristeza que antecipei, e deixo um ameno sorriso espalhar-se no meu espelho. Olívia, tu és quem tu és! Toda a gente, no seu interior, gostaria de ter muito do que tens, de quem és! O facto de eu não ter, ainda que não o queira admitir, algo que outros têm no seu exterior, como uma companhia, talvez valha a pena para ter o que tenho, no meu interior, e que os outros querem ter, ainda que não o queiram admitir. Que estranho equilíbrio, autor…

         Pięć

        Acordo. Não me apetece levantar. Sinto-me meio pesada hoje. Sinto que o esforço de ser feliz às vezes pode ser cansativo. Custa fazer o trabalho todo sozinha. Custa e deixa-me a questionar se consigo. Levanto-me e lavo a cara no quarto-de-banho, ao som de Nina Simone. Penso na minha própria sugestão, faz alguns dias. Perguntei, de mim para mim, qual seria o problema de visitar um psicólogo. Sei lá, para ver como é, para ver se me ajuda a tentar fazer algum sentido destas ideias que tenho, dos pensamentos que me ocorrem todos os dias, todos os segundos. Penso. Não só dos maus, concerteza, mas de toda esta confusão de esforços que tenho. Sinto a minha mente a puxar por tudo quanto é lado. Entro no chuveiro, arrepio-me com a água fria e queimo-me com a rápida mudança para água quente. Sinto que o que tenho e o que quero nunca será o mesmo, e se por um lado tento aceitar isso sem problema, por outro vejo tal tarefa como algo talvez demasiado exigente. Sempre me senti assim, difícil de agradar. O que é mais interessante é que, quanto mais tempo passa, não sei se, nem que só por vezes, o que me davam, ou o que eu me dava, era suficiente. Não tenho um caderno onde possa anotar o que me dão, e o que é suficiente, e isso faz com que, pelo sim, pelo não, queira tudo. Entro no quarto e começo a vestir-me, sem pensar em demasia naquilo que levar. Sim, talvez uma opinião de alguém de fora, treinado em ver as coisas com mais clareza, me pudesse ajudar. Se bem que ninguém tem a fórmula secreta…

            Pinto os lábios na fila do trânsito lisboeta. Reparo como me esqueci de ligar o rádio, ritual de todos os dias. Inclinada que estou para pensar e questionar, penso se estarei a pensar em demasia, e isso me deixe assim, alheada do que costumo fazer, de como costumo ser. Como é possível pensar-se que talvez se esteja a pensar em demasia? É mesmo disto que falo! Às vezes parece que a minha VIDA e a minha maneira de ser têm de ter sido criadas por alguém. Tenho pensado (claro) nisto, e pensar em Deus é para mim muito aborrecido. Queria a minha existência mais fictícia, como que preferindo ter a minha própria forma de ser, ainda que irreal, do que a realidade de toda a gente.

            Chego à escola e estaciono o FIAT à minha própria maneira, e quando saio acendo um cigarro. Vejo umas dezenas de carros novos. Sempre gostei de Setembro e as novas enchentes de professores que vêm contaminar o espírito de velhice das paredes colegiais. Estou prestes a acabar o cigarro e entrar, quando vejo, ao fundo, saindo de um Renault qualquer coisa alguém que me parece um sério candidato a professor mais bonito do ano. É alto, tem cara de poucos amigos, um rosto redondo e veste-se impecavelmente.

            – Eduardo, prazer! – anuncia, quando finalmente nos apresentamos, na sala dos professores. A sua voz não é tão firme como imaginava, e vi a sua cara de poucos amigos subitamente transmitir-me alguém muito simpático e interessante. Facto é que, apesar de ser diferente do que aquilo que imaginei, passado uma hora de conversa estou caída por ele. Gostei sobretudo da maneira como a conversa saltou de tema em tema, com um fio condutor invisível que me deixava com a confortável sensação de ser ouvida e entendida.

            Quando fui para casa, trazia comigo um sentimento diferente. Afastei um pouco para o canto a ideia de visitar um psicólogo, apenas porque alguém fora capaz de me ouvir por horas a fio. Que quero, então? Que me percebam? Penso nos meus pensamentos da manhã, e em como tudo o que eu queria era perceber-me, e questiono a ligação que há, ou não, entre alguém me perceber, e eu própria o fazer. Talvez seja uma perversa mistura entre ter um potencial amante, e alguém com quem conversar ao mesmo tempo, algo de que (quase) sempre fui privada, nesta contagiante VIDA…

         Cztery

         Dói-me a cabeça. Abro os olhos, percebo a claridade e o ar pesado em todo o lado. Cheira a sono, tabaco, e vinho tinto. Castigo a minha dor de cabeça por me permitir recordar-me do que disse e me foi dito na noite anterior. Porque não pode a ressaca ser mais decidida e levar de mim tudo o que se passou? Levanto-me, nua, procuro a tua presença, e percebo estares na varanda. Uma nuvem de fumo paira ao redor da tua cabeça, como uma auréola perdida por alguém que mais a merecesse. Bebo um copo de água, e apetece-me que a noite anterior desapareça, para sempre. Ao pousar o copo na banca, que te chama com um fresco estalar, penso que dia gostaria, de facto, de reter de ti. A noite de ontem, a última terça, a noite de segunda… tudo momentos infernais, talvez o preço a pagar pelos cada vez mais raros momentos brilhantes que temos.

            Visto a minha roupa interior e abro a porta da varanda.

            – Que queres, Olívia? – perguntas, sem te virar. Vejo a tua pele desconfortável, anunciando-me o frio que sentes, o sacrifício que fazes para estar noutro sítio.

            – Não sei. Não sei mesmo… – respondo, com toda a honestidade. Tiro um dos teus cigarros e acendo. Fazes-me sentir sem valor e suja na maior parte das vezes, e por isso me é difícil aceitar quando não o fazes. Deixa-me numa posição em que não sei que momentos esperam por quais. Esperam os belos pela destruição, ou esperam os maus pelo suave glamour dos teus beijos? É este não-saber que faz com que, quando te encontro amoroso para comigo, escolha esses momentos como os melhores para me vingar – Não faço de propósito, sabes… – admito, como se estivesses na minha cabeça nos segundos que antecederam esta conclusão. Olhas para mim e não dizes nada. Detesto pedir desculpa! Sinto-me frágil e sinto que te esqueces de todo o papel que tens e sempre tiveste nisto tudo – E não sei que te diga. É que… o pior também é que sou sempre eu que não sabe o que dizer…

         – O quê? – perguntas, parecendo genuinamente confuso, enquanto se sentas na espreguiçadeira.

            – Sou sempre eu que não sabe o que dizer, porque sou sempre eu que quer dizer alguma coisa! Tu pensas sempre que não falar de nada é a melhor maneira, mas adivinha, não é…

         – Eu não quero começar outra vez…

         – Claro que não queres começar outra vez. É incrível como me dás razão de maneira tão fácil, sem sequer te aperceberes… – digo, a meia voz, dando-te as costas. Ouço-te levantar e entrar. Como me odeio por querer ir atrás de ti. Sinto uma energia entre os nossos corpos como nunca senti, algo galáctico e inexplicável, que deixa a minha racionalidade a encolher os ombros e o meu coração apertado, desapertado. Batalho contra mim mesma, e num gesto de evidente masoquismo, acabo o meu cigarro com calma, e apenas aí entro no quarto. Vestes-te, sentado na cama – Onde vais?

         – Sei lá, vou sair daqui, só sei disso. – respondes, cansado.

            – Sais assim, sem mais nem menos? – lanço, mostrando-te o que realmente quero dizer com a minha pergunta.

            – Olívia, deixa-te de merdas! Há mais alguma maneira de sair? Estou farto disto. Já não vai dar. Está cada vez pior. Fazemos merda atrás de merda. Tu fazes o que te apetece, jogas comigo,… – sento-me na cama, de lado. Vejo-te, pelo canto do olho, a apertar os teus sapatos.

            – Diz-me só isto, Bernardo. Faço-te alguma coisa que tu não me fazes?

         – Fazes tudo! Eu não mereço metade das merdas que tenho de aturar contigo! E ainda assim levo com tudo, com as tuas mudanças de humor, com o teu talento especial em estragar seja que momento for… pensas que quando estás feliz tenho de estar, que quando te apetece foder, tenho de foder, que quando te apetece ir aos arames, tenho de entender! – soltas, quase violentamente. Aguento o desespero firmemente, com um rosto que demonstra a mais genuína indiferença. Espero que te levantes. Dizes qualquer coisa mas não consigo falar, com medo de rebentar em lágrimas imerecidas. Deixo-te sair, caio para trás, e molho com lágrimas os lençóis que momentos antes nos tiveram. Penso nas tuas cruéis palavras, em como pode ser possível que digas de mim tudo aquilo que penso de ti. O meu interior alterna entre sentir-se como a pessoa mais injustiçada de sempre, e a pior pessoa que já existiu.

            Seremos tão parecidos ao ponto de nos afastarmos irremediavelmente? Estarei enganada e serei mesmo eu o problema? Não, tenho a certeza que não. Mas não consigo aceitar que o facto de sermos tão parecidos nos afaste tanto assim. Como é possível termos noutra pessoa uma parte de nós e isto apenas colocar um abismo de diferença entre cada palavra? Deixo a minha mente vaguear e, certa que voltarás, mais uma vez, procuro no passado onde as coisas começaram a correr mal.

Trzy

            – Então que pensas tu acerca disto tudo? – pergunta-me Bernardo, divertido com toda a comoção que os nossos amigos manifestavam. Ricardo falava alto e insurgia-se contra tudo o que existisse, desde que viesse dum nível acima; Maria tentava explicar algumas das políticas e André esforçava-se por se manter a par da conversa. Eu, calada, ouvia o que toda a gente tinha a dizer, com um sorriso, quem sabe, zombador.

            – Sinceramente acho isto tudo muito divertido!

         – Divertido?! – exclama Ricardo, como se eu tivesse dito que deus era uma mulher. Bernardo olha para mim com o seu olhar extremamente sedutor, um sorriso rasgado antecipa a minha explicação que, admito, servirá apenas para contribuir para o rebentamento de uma veia qualquer do meu caro amigo Ricardo.

            – Sim. Pensa em tudo o que vivemos! Que melhor altura para viver do que agora? Viver o Flower-Power debaixo de uma ditadura, não é brilhante? – arrisco, apenas para ver os grandes olhos de Ricardo como que duplicarem de tamanho. Fica sem palavras, finalmente!

            – Brilhante?! Sinceramente Olívia! Diz isso ao Álvaro Cunhal, que se não se tivesse posto a andar de Peniche ainda lá estava a apodrecer! Oito anos de isolamento total; isso é brilhante?! – responde o activista, tendo ficado sem palavras por uns breves instantes.

         – Ricardo, relaxa, – vem Bernardo, em meu auxílio – não vês que a Olívia só te quer provocar? É que é estranhamente fácil, pá! – rimos todos.

         X + 2h = Y

            Com o passar das horas os amigos foram desaparecendo. Amigos? As pessoas com quem estava, uma vez que as conheci através do simpático Bernardo, faz pouco tempo. Ficámos os dois para trás, bebendo as nossas imperiais no Nicola, um dos meus sítios preferidos em Lisboa. Conheci Bernardo numa acção de formação em Odivelas, e a atracção foi imediata. Sinto algo estranho em relação a ele. Algo que me é difícil explicar por palavras. Quase me atreveria a dizer que o meu corpo sente a sua presença, ainda que os meus olhos não o alcancem. Acho tudo isto bastante ridículo, nunca acreditei neste tipo de ligação entre pessoas, mas talvez por isso mesmo o ache tão engraçado. Gosto destes sentimentos novos.

            Sentindo que o interesse era mútuo, acabei por lhe dar o meu número, para onde tem vindo a ligar algumas noites por semana. Acho simplesmente genial a maneira como passamos tanto tempo ao telefone sem dizer nada. Ouço a sua jovem respiração do outro lado e isso, por vezes, é suficiente para o querer junto de mim no mesmo instante. Ainda o trato com alguma superioridade, mas acho que gosta. “No fundo, seis anos de diferença é algo que vale a pena respeitar, e fazer-se respeitar”, digo, de mim para mim, com um tom divertido.

            – Grandes personagens, não? – pergunta o meu desejo, com um sorriso. Aprecio os seus olhos azuis em total contraste como seu tom de pele, moreno, quase árabe, com um rosto angular e convidativo.

            – Sem dúvida! E tenho de admitir que adoro meter-me com o Ricardo. Ele devia tomar menos café, ou

         – Mandar umas de vez em quando, concordo perfeitamente! – interrompe, com uma gargalhada. Fazemos uma pequena pausa.

            – E tu, Bernardo?

         – E eu? – pergunta, um pouco confuso. Não me dou ao trabalho de lhe explicar o que quero dizer, dando-lhe o seu tempo – Bem eu não dou umas de vez em quando. Quando dou alguma de vez em quando é só uma, fico-me por aí… – a maneira inocente como diz o que diz é sublime. Especialmente porque é uma inocência longe de ser inocente.

            Y + 1h30 = Z

            Entramos em minha casa, sentamo-nos no sofá. Não dizemos uma palavra antes de nos agarrarmos violentamente. Beija-me com força, aperta-me as mamas, aquece-me com o seu fôlego. Sinto algo que nunca senti com ninguém. Um derretimento de mim e de si, uma mistura numa alma apenas, um coração a bater pelos dois. Sinto planetas de adrenalina na palmas das minhas mãos, na minha pele, e um estranho orgasmo a fazer-se anunciar.

            – Sentes o mesmo que eu? – pergunta – Quase desde o primeiro momento que te vi senti-me doido. Tinha de… não só de dormir contigo, mas tinha de te ter nos meus braços, foi estranho, mas espectacular.

         – E agora estás aqui… – digo, baixinho, para os seus olhos cor de sonho.

            Z + 2h = ?

         Sinto o meu corpo espalhado pela cama como a mais bela harmonia. Estou leve e ainda que já não consiga, sinto o seu cheiro no resto de mim. Teve de ir embora, e senti o fio que nos une esticar-se por Lisboa, indo até onde tenha de ir, mas mantendo-nos ligados, como um vínculo eterno. Sinto um vício de si. Uma necessidade de o ter ao meu lado sempre, a cada segundo, e o desespero que tenho comigo por tê-lo noutro local que não na minha cama é docinho e irresistível. Fecho os olhos, com a certeza de que encontrei a minha alma gémea, e de que envelhecerei a seu lado.

Dwa

            – Vais-te casar? Estás a brincar comigo? – pergunto, plena de espanto, a Josefa. Caminho com a minha amiga de infância pela Avenida principal em direcção à loja do meu pai.

            – É o melhor a fazer. Não posso continuar a estudar, e o João tem um bom futuro pela frente. E eu gosto muito dele. E ele gosta muito de mim – responde-me, tentando convencer-me de algo que não entendo. O seu olhar está perdido nos carros que passam, no ar invisível e na minha surpresa.

            – Mas Josefa… E… as coisas dele?… – pergunto, com um tom que fala por si, referindo-me ao apetite insaciável que o seu namorado de vinte e sete anos tem por noitadas, bebedeiras e mulheres.

            – Oh… Olívia. Que é que queres? Ele tem os seus defeitos, mas é um bom homem, sabes? E eu já tenho vinte e dois anos, sabes como as coisas são. Ele não é perfeito, eu também não! – diz, parando no meio da rua. Está nitidamente abalada, demonstrando o intenso dilema que vai dentro de si. Paro uns metros à sua frente e vejo a minha amiga, com o seu olhar perdido e triste, as mãos a deslizar suavemente pelo seu corpo de proporções generosas, e as suas sobrancelhas pedindo reconforto.

[algo se passou comigo neste instante. Algo que não sei definir nem nomear]

Não há nada a fazer. Vejo o conformismo no seu olhar como algo que me abana incrivelmente. Sinto-me indisposta, vendo tudo o que não quero ser em alguém que, de certa forma, sempre invejei. Que triste reviravolta do destino…

            – Sim, Josefa, tens razão. Ele é um bom homem – minto – que te pode dar uma boa VIDA e estabilidade. E é rico! – solto, com um largo sorriso, tentando afastar as dúvidas de Josefa, que nunca mudariam a sua opinião… Quando nos decidimos a não arriscar, a assentar com a opção que aparenta ser a melhor, as dúvidas que sentimos servem apenas para carregar de culpa as decisões já tomadas, nunca para mudar o futuro…

            Quando chegamos à drogaria do meu pai, recebo o seu olhar vestido com a insatisfação do meu atraso. Vejo Piedade sair do armazém com o avental, a falar sozinha.

            – Isso são horas, Olívia? – pergunta, sacudindo as mãos poeirentas.

         – A Josefa vai-se casar! – largo, tentando mudar o assunto. Piedade abre-se num previsível sorriso e pergunta à minha amiga, com o olhar, se é verdade, recebendo a sorridente confirmação. O meu pai levanta o olhar das contas que faz, passa ligeiramente por Piedade, passa por mim, abana discretamente a cabeça, e volta a mergulhar nas contas. Sei exactamente o que passou pela sua mente. Quem sabe as três propostas de casamento que recebi nos últimos quatro anos, desde que fiz dezoito. Cheguei a equacionar uma dessas propostas, mas mais cedo ou mais tarde algo acaba sempre por servir como um abre-olhos… como Josefa serviu, para mim, nesta mesma tarde.

            Josefa foi para casa poucos minutos depois, deixando-me a trabalhar, ajudando a minha mãe a organizar o armazém. Caixas, caixas, centenas de caixas para ordenar em dezenas de prateleiras, num par de horas. Viajei pelos últimos anos nessas mesmas horas. Tentava levar a minha mente para a loucura dos acontecimentos passados, mas tudo é demasiado vago e superficial. Com tristeza e braços baixados vejo a loucura dos últimos anos como algo que praticamente não aconteceu. Sinto que estou a viver uma VIDA que não é a minha. Vejo as minhas noites roubadas a inocentes e aborrecidos jovens como tudo aquilo que posso recordar com um sorriso. O resto é uma mistura cinzenta de dias cinzentos impossíveis de distinguir entre si. Quatro anos e que tenho senão algumas poupanças, algumas rugas aventureiras, calos na palmas das mãos e mais três quilos? Que terror! Que terror é olhar para o passado e sentirmo-nos indecisos ao pensar se preferimos recordar o nada ou a tristeza de nada ter acontecido!

            Por isso mesmo, Josefa me ajudou.

            Estava parada, diante de si, vendo e ouvindo as suas ridículas razões para casar, e a realidade abateu-se sobre mim. Senti-me ao longo deste dia começar a despertar, lentamente, abrindo os olhos dum sono pesado, fosse ao ajudar Piedade com as infinitas caixas… ao lavar a cara à noite… ao fumar um proibido cigarro, sentada à janela… Um processo de avaliação dos últimos quatro anos que tardou pouco mais de quatro horas.

            É tempo de agir, decidir, e tomar um rumo que me leve em direcção a algo novo, aventuras por viver e pessoas por conhecer. Já conheço todos os homens desta pequena vila, e engano-me se pensar que algum deles me fará, alguma vez, feliz. Sei que tenho uma alma gémea, sei-o bem, e sinto-o, mas sinto igualmente que não só não está aqui, como também nunca a vi. O meu destino mostrar-ma-á, se pelo menos eu lhe der uma pequena oportunidade, se me der a mim mesma… uma pequena oportunidade. Quero seguir o meu sonho, e sei que com ele tudo de mais virá. Basta escolher mudar.

            – Pai, Piedade… – chamo. Estou parada na ombreira da porta, eles estão sentados à lareira, com um ar ensonado. Viram lentamente as caras para mim – No próximo ano lectivo vou para Lisboa estudar. Quero ser professora!

Jeden

         – Que queres fazer mais tarde? – pergunta-me Sebastião, passando-me o seu cigarro. O meu primeiro cigarro. Não sei bem porque o fumo, mas divirto-me a pensar que é apenas para irritar o meu pai. Na verdade, até gosto, mas só consigo ver o paizinho a passar-se completamente se descobrir que a sua filha de quinze anos está a fumar depois de ter estado a beber com um rapaz de dezanove.

            – Sei lá, Sebastião, já não é tarde que chegue? – pergunto de volta, olhando para o relógio que aponta as duas da manhã. Fingi ir dormir três ou quatro horas antes e saí pela janela para me encontrar com o meu maturo amigo. Gosto dele, tem um certo carisma, e isso faz os nossos lábios aproximarem-se neste momento. Solto um pouco de fumo para a sua cara barbuda.

         – Não, Olívia… não é “logo”… Que queres fazer mais tarde? – ri-se – Pronto, eu pergunto como queres ouvir… Que queres fazer quando fores grande? – insiste, percebendo eu desta feita a verdadeira intenção da sua pergunta. Estamos sentados no meio do coreto, não se ouve nada senão o eco das nossas vozes, ainda que seja Sexta à noite. Sim, que quero fazer “mais tarde”? Rio-me consigo com este seu “quando fores mais grande”.

            – Ok, ok… deixa ver… mais tarde. Oh, para que é que estou pra’qui a fingir que nunca pensei nisso? – sorrio – Como se eu nunca tivesse pensado nisso. Sabes, eu sei exactamente o que vou fazer nesse mais tarde! – respondo, deixando uma pausa para que ele me pergunte o que vou fazer.

         – Para já vou acabar a escola! Sim, porque uma aluna como eu, mais vale ir até ao fim!

         – Mas acabar a escola toda? Acabar o liceu? – pergunta, deixando-me um pouco envergonhada. Imagino que o seu pai conhece o meu, e o paizinho já terá dito que não quer ver isso acontecer. Sinto a imagem que gosto de mostrar de mim como um pouco ameaçada porque, na verdade, talvez não seja senhora de mim mesma assim tanto quanto isso.

         – Sim, claro! Estás parvo, ou quê? – lanço, um tanto ao quanto chateada. Tiro um dos seus cigarros, que acendo.

         – Pronto, pronto, desculpa. Estava só a perguntar porque não é toda a gente que está interessada em acabar o liceu!

         – Ok, está bem. Mas queres ouvir ou não? É que perguntas e depois pões-te com comentários engraçados…

         – Sim, quero, claro que quero! Diz-me! – exige. Mal o ouvi, pois a minha mente, eventualmente ajudada pelo Macieira bebido, não consegue descansar, não consegue parar de voar…

         – Então… é verdade que me apetece neste preciso instante bater asas e nunca mais aparecer por aqui… mas a realidade por vezes tem de esperar, e por isso mesmo permito-me ficar por aqui no máximo dos máximos até acabar a escola. Depois os meus pais, que já nem querem que vá até ao fim, estão já a ver se me apresentam a este e áquele, coitados… Eu sei que não fazem por mal, mas querem despachar-me o mais cedo possível. E eu sei que não é exactamente um casamento arranjado, mas se eles puderem pôr a sua colherzinha, claro que põem. Se calhar devem já ter percebido que não sou muito boa de aturar e que não me safo sozinha! Por isso mesmo, e por me estarem sempre a dizer que depois de acabar a escola começo a trabalhar com eles, “para ver o que custa a VIDA”, é que ainda não lhes disse que vou direitinha para Lisboa!

         – Lisboa? Fazer o quê?

         – Sim, Lisboa. Não sei ainda. Ou vou para a Universidade ou vou estudar para ser actriz! Ou as duas coisas! Sim, as duas coisas! Vou tirar um curso de Filosofia e ao mesmo tempo actuar! E vou conhecer a pessoa mais profunda e interessante do Mundo na minha turma, que vou levar para o Teatro! Ele vai experimentar, e vai descobrir que é um talento natural, e juntos vamos ter coragem e dedicar-nos a tempo inteiro a actuar! Sim! De início vai ser difícil e vamos contar os tostões durante um ano ou dois… Toda a gente vai pensar que somos uns fracassados, mas depois somos descobertos pelo real valor que temos, e vamos ficar famosos! O casal mais talentoso de Portugal! E começamos a fazer peças em Inglês e viajamos pelo mundo todo com peças de teatro que deixam as pessoas a chorar a alma em rebentos! Vamos ficando cada vez mais ricos e a dada altura vamos ganhar tanto dinheiro que podemos ter professores de todas as disciplinhas que existem sempre a nos acompanhar para educarem os filhos que vamos tendo por esse mundo fora. Lucas e Lucília, que vão nascer já dentro do espectáculo e, contrariamente ao que se imaginava possível, serão ainda mais talentosos que os pais. Vão falar Inglês, Português, Francês e Espanhol! Vão criar paixonetas na Hungria, passar férias na Itália, beber chá em Marrocos, nadar com os golfinhos nos Açores, ajudar a construir casas em África… vão viver uma VIDA cuja observação apenas me fará ainda mais feliz. Criamos amigos em Moscovo, Hong-Kong e Buenos Aires, compramos casas em São Paulo, Los Angeles e Creta! Meus deus, como vai ser lindo! Vamos envelhecendo lado a lado e os nossos filhos têm os deles. Vivo com o amor da minha VIDA eternamente, até que um dia, já muito velhinhos, adormecemos ao mesmo tempo, e não acordamos ao mesmo tempo, dormindo p’ra sempre de mãos dadas e um sorriso de quem viveu tudo o que tinha para viver…

         – Sonhas alto… – diz.

– Os meus planos são os meus sonhos e os meus sonhos são as minhas ideias. E tudo se vai concretizar, de uma maneira ou de outra, eu sei que sim. Sabes porquê?

         – Porquê?

         – Porque basta querer, e ter coragem de se aventurar, e aí tudo vai correr bem! É por isso mesmo que eu sei isto que sei… que vou ser feliz para sempre, para sempre junto do amor da minha VIDA, que não posso esperar por conhecer…

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