Não é Bem AssimOpiniãoReflexão

Raquel Varela e o Reitor

Depois de ter criado a Metamorfose Ambulante, um programa no canal de Youtube do Maluco Beleza, onde pessoas vêm contar uma história de viagem, andava já há muito tempo a cogitar num programa deste género. As conversas que vou tendo com amigos e alguns programas estrangeiros que sigo, cujas hiperligações deixo na descrição deste vídeo, inspiraram-me a criar um espaço onde possa reflectir acerca do que se passa e passou em Portugal ou no mundo, muitas vezes pensando no que as pessoas dizem, disseram, pensam ou pensaram e chegar à conclusão que… não é bem assim. O meu objectivo nunca será insultar as pessoas, ainda que possa insultar a sua inteligência questionando a presença da mesma em determinado momento das suas intervenções. Tentarei ter sempre uma análise sóbria e fundamentada e, ainda que não me comprometendo a grandes debates nas secções de comentários, convido sempre a crítica construtiva. Sempre que necessário fundamentarei as minhas afirmações e podem encontrar hiperligações relevantes na descrição dos vídeos.

Sendo um ávido defensor do discurso como o único meio saudável de chegar a algum lado, focar-me-ei também, por vezes, nas técnicas de debate das pessoas, trazendo à tona eventuais falácias de lógica que possam usar nas suas argumentações.

Tenho uma produtividade tardia ou um diletantismo que vai ficando e isso fez com que iniciasse a Metamorfose Ambulante anos depois de a ter pensado e de estar com o “Não é Bem Assim” a existir só no meu pensamento também há alguns anos. Estava à espera de ter o equipamento certo, o tema certo, o momento certo, ao mesmo tempo consciente de que, provavelmente, andava só a arrastar-me. Mas esta semana a Raquel Varela, historiadora, investigadora e professora universitária, não me deixou grande opção. Apesar de não ser uma pessoa extremamente famosa é uma pessoa com alguma voz, e incomoda-me imensamente quando alguém com o poder de ser ouvida pensa poder agir sem respeito pelos seus leitores com afirmações sem substância ou pesquisa. Foi por isso que, lendo um texto dela a propósito do fim da carne de vaca na Universidade de Coimbra percebi que o tempo era agora, ainda que esta minha intervenção já venha um pouco tardia. Percebi isso pois ao ler senti, de certa forma, a minha própria inteligência insultada com as pseudo-ciências, a desinformação e o alarmismo que propaga, ainda que, paradoxalmente, ela própria pense que batalha esse mesmo alarmismo.

Neste texto, Raquel Varela começa por dizer que o reitor não decidiu excluir a carne de vaca, mas que decidiu que quem tem menos dinheiro é que vai deixar de comê-la pois não tem dinheiro para a comer fora da universidade. Passa depois para dizer que o melhor seria ter carne biológica, como noutras universidades. Um aspecto que será constante nas minhas abordagens é o de assumir como verdade aquilo que é afirmado como tal e a não duvidar de determinadas posições só porque me parecem estranhas. Duvidarei, naturalmente, mas quando tal me parecer evidente, e explicá-lo-ei sempre que tal cenário aparecer. Assim, não conhecendo o reitor da Universidade de Coimbra nem tendo nenhum dado na minha posse que me aponte que mente quando diz que a sua preocupação é o meio ambiente, vou assumi-lo como tal. Então, sendo esta a sua preocupação, seria válida a introdução de carne de vaca biológica em vez do seu banimento? Não. Pondo de parte outras razões para o vegetarianismo, vou focar-me por uns instantes na análise da sustentabilidade deste tipo de carne.

Cerca de um terço da terra sem gelo é dedicada à criação de gado. Como o gado alimentado exclusivamente de erva precisa de mais tempo para crescer, se todo o gado fosse biológico, necessitaríamos de mais trinta por cento de gado para satisfazer a procura actual – mais vacas a consumir água e a produzir metano – e importa referir que, com o aumento do poder de compra de grandes números de pessoas em países até agora muito pobres, a tendência é esta procura aumentar.

Dentro de tudo o que envolve a produção e comercialização de gado, quase quinze por cento dos gases nocivos para o ambiente provocados pela humanidade vêm da pecuária, um valor que rivaliza com toda a indústria de transportes. E as vacas, naturalmente, não são excepção, havendo um especial enfoque nas grandes quantidades de metano que as vacas produzem, mesmo que biológicas, uma vaca podendo produzir até quinhentos litros de metano todos os dias. O metano tem um efeito cerca de vinte e cinco vezes mais potente que o dióxido de carbono, apesar de se decompor ao fim de cerca de nove anos, altura em que se desfaz em água e… dióxido de carbono.

Temos cerca de um bilião e meio de vacas no mundo.

Efectivamente, e apesar de começar a aparecer alguma evidência de que alguns solos podem neutralizar a produção do metano, há pouca evidência que aponte para o facto do gado biológico ter uma pegada carbónica inferior àquele alimentado a grão numa gaiola. Assim sendo, o estudante pobre tem tanto direito à contribuição para um ambiente doente quanto o aluno rico – nenhum.

Depois de um parágrafo a defender a produção deste tipo de carne na Universidade de Coimbra, dá uma perninha na sugestão de que o objectivo do reitor era reduzir a despesa e acaba por dizer, como se fizesse parte do comité de elaboração de menus, que vai acabar por ser servida soja geneticamente modificada, fazendo as sirenes do pessoal que se assusta com estes termos soar. Geneticamente modificado?! Deus me livre! É irónico que Raquel Varela se tenha esquecido de que a própria vaca é um geneticamente modificada. Não foi geneticamente modificada em laboratório mas foi geneticamente modificada na medida em que, há mais de dez mil anos, os seres humanos começaram a escolher as características dos búfalos selvagens que mais lhe interessavam. Fazendo isto sucessivamente criaram este novo animal que hoje em dia cria cisões entre reitores de universidades e historiadoras. Mesmo quanto às técnicas modernas de modificação genética, o consenso é que é tão seguro quanto essas técnicas mais convencionais.

“A “transição”” diz Raquel,  “está a relevar-se uma forma de privar ainda mais os mais pobres de tudo, irão pagar mais impostos verdes, estão privados da cidade “verde”, num subúrbio cinzento, vestem fibras horrorosas enquanto fabricam algodão natural de design inovador em fábricas super poluentes, e agora podem esperar esta moderna versão Jonet de “não de pode comer bifes todos os dias”. Tudo para o bem deles, como se sabe se os ricos não cuidassem dos pobres eles jamais saberiam o que fazer. Agora por exemplo, imagine-se!, querem comer bifes que fazem tão mal à saúde e ao planeta…”

Neste parágrafo Raquel começa a definir o estilo para o resto do seu texto. Para defender o seu ponto de vista começa a oferecer-nos uns laivos da falácia de apelo ao medo, sugerindo que a única maneira de salvar o ambiente virá à custa dos mais pobres, que ficarão, cito, ainda mais privados de… tudo. E passa depois a dizer que a poluição é grave mas que o mundo não está a acabar. Usando a mesma lógica posso dizer que a maioria dos pobres em Portugal são pobres mas não estão a morrer, portanto não temos que nos preocupar com eles.

Dentro do ridículo do texto entra a minha parte preferida quando afirma que comer carne em idades jovens, quando se estuda, é essencial ao cérebro e que nos garante que nos colégios onde se formam elites dirigentes a carne é biológica e do lombo. Fui ver o menu da cantina de uma das mais prestigiadas universidades do mundo e posso dizer que no menu para almoço da Universidade de Harvard, por exemplo, entre pratos e acompanhamentos temos setenta e três opções, cinquenta e quatro são vegetarianas e, no caso da carne, nenhuma indica ser, nem do lombo, nem biológica. Diz que comer muita carne faz mal e que não comer nenhuma faz muito mal. Da mesma forma que não vou ao ponto de afirmar, taxativamente, que uma dieta vegetariana é mais saudável que uma dieta mediterrânica, por exemplo, devido a haver diferentes benefícios para diferentes dietas, também não pode a Raquel dizer o seu contrário, por não haver um consenso científico neste domínio.

Se a parte anterior é a minha preferida esta que se segue não o é por estar tão longe da lógica quanto, para Raquel, o pobre vai passar a estar do novilho. Diz, e cito, que “um dos maiores estudos de saúde do mundo provou que a segurança no emprego e a autonomia podem aumentar 18 anos a esperança média de vida e o medo fazer cair a mesma 18 anos, pela produção de cortisol. Nada faz tão mal à espécie humana hoje como o medo da sobrevivência, condição em que vão estar a grande maioria dos jovens estudantes da Universidade de Coimbra quando entrarem no mercado de trabalho. Coisa que não preocupa o reitor.” Há aqui tantas questões que… não sei ao certo por onde começar e, ao elaborar as linhas orientadoras desta minha intervenção, escrevi e rescrevi algumas vezes. O reitor preocupa-se com o futuro dos seus alunos? Não sei, não o conheço. É legítimo assumir que, sendo reitor, se preocupe? Parece-me que sim. Raquel conhece o reitor? Também não sei. Pois só o conhecendo bem poderia afirmar que ele se está a marimbar para o futuro dos seus alunos. Mas sinto-me ridículo só de abordar esta questão pois, claramente, ela não tem nada a ver com carne de vaca! Ela simplesmente parece não gostar desta nova política na Universidade de Coimbra, logo transferiu esse desagrado para a pessoa do reitor e atacou-o inventando um pormenor qualquer acerca da sua pessoa. Poderia eu dizer que ela não quer preocupar-se com o futuro do ambiente para não ser das pessoas que perde 18 anos de esperança média de VIDA? Não contente, regressa às ilações, assumindo que o reitor vê como garantido o fim do planeta, como se tivéssemos de agir só quando está tudo a acabar.

Raquel aqui presenteia-nos com uma falácia de falso dilema, como se apenas fosse possível o reitor preocupar-se com os alunos, ou com o ambiente acabando também, parece-me numa falácia ad hominem sendo que acaba por atacar o próprio reitor e as suas capacidades enquanto cuidador dos seus alunos, o que poderá levar o leitor mais incauto a duvidar, portanto, da própria ideia do reitor.

E acaba em beleza, com uma falácia de apelo ao medo misturada com a falácia da derrapagem, aquela que assume que se algo acontece neste momento, algo pior acontecerá no futuro. Acaba, e isto é verdade, a referir o seu medo de voltarmos… ao Estado Novo. Porque um reitor, uma pessoa numa posição cuja descrição implica tomar decisões que afectam milhares de pessoas decidiu retirar a carne de vaca dos menus da Universidade de Coimbra. Não teria a arrogância de fazer da minha experiência ciência, mas cinco anos em Coimbra são centenas de idas à cantina, apesar de não vir de uma família pobre. Centenas de idas à cantina em que vi carne de vaca ser comida… de vez em quando, é certo, de vez em quandinho…

 

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