Textos

Mauritânia!

Estou na Mauritânia! À minha frente o deserto escuro acena do outro lado da estrada, à minha volta senegaleses, mauritanos e um ou outro marroquino jantam e bebem chá. O som das conversas em francês e árabe é poluído com o som do gerador que trouxe, há pouco, energia. Troca-se dinheiro, em transacções que não consigo perceber, e já não pairam os vendedores de tabaco e cartões de telemóvel. Ontem, quando fui dormir em Centre Bir, nunca pensei que hoje estaria aqui a esta hora…

Acordámos hoje um pouco mais tarde do que as noites anteriores, lá p’rás sete e pico. O Will limpou a corrente da bicicleta, tomámos o pequeno-almoço e partimos, depois de nos despedirmos do Dany e da Justine, que arrancariam mais tarde. Parámos uma vezita, e oitenta e tal quilómetros depois do nosso último pouso, chegámos a Guargarate, a fronteira. Almoçámos dois peixes cada um com batata frita e salada de tomate e lá fomos. Foi uma confusão. Mostrar o passaporte a um polícia, ir a outro buscar um papel, mostrar outra vez tudo a outro, levar um carimbo doutro. E ainda mais outro antes de chegarmos à Terra de Ninguém, uns quatro quilómetros bastante bizarros que separam aquele país da Mauritânia.

Depois de passarmos os táxis e o pessoal a tentar trocar dinheiro, apareceram carros queimados, deteriorados, abandonados, centenas de pneus e lixo de há vários anos. Chegámos à Mauritânia e, não sei se por regra ou por casualidade, apareceu um homem vestido à militar, com um turbante verde tropa e um cão a averiguar o que trazíamos. O canídeo estava estranhamente entusiasmado com os alforges do Will, e o meu amigo sorria, descontraidamente.

“Tens alguma coisa?” perguntava o homem enquanto o cão escarafunchava.

“Não, eu faço desporto, não fumo” respondeu o meu amigo com um sorriso. O sorriso desapareceu quando o homem descobriu um saco com um pedacito de haxixe.

“Oh!” exclamou o canadiano, genuinamente. Tinha aquilo ali há semanas e não fazia a mínima ideia. De repente estava lixado…

“Então, como é que ‘tá a cena?” perguntei, passado um pedaço.

“Vou para a prisão!” respondeu, sentado no chão, a coçar a testa. O tempo foi passando e o polícia continuou à procura, barafustando entredentes.

“Se eu te perguntasse e dissesse que tinhas um bocadito, deixava-lo aqui e ias… mas ‘Ah e tal sou desportista’, isso não!”

Aqui tive de aguentar uma gargalhada ouvindo o militar a parodiar o Will. Entretanto chamaram-me para ir tratar do meu visto. O Will apareceu cinco minutos depois a dizer que se tinha esquecido da carteira no hotel.

“E em relação à ganza?”

“Parece que não há problema, afinal… Mas agora apercebi-me que não tenho a carteira…” Não estava fácil.

“Esperas por mim com as minhas coisas?”

“Sim, espero” e lá voltou para trás. Deixou-me os alforges e apanhou boleia de uma carrinha de caixa aberta. Entrei numa sala, inesperadamente moderna, para tratar do visto de cinquenta euros, onde me tiraram as impressões digitais e fotografia, saí, fui levar o passaporte para ser carimbado, e carreguei os meus haveres até ao segundo café, à esquerda. Travei conversa com um sarauí que falava espanhol e que me deu a infeliz notícia que a fronteira fechava às cinco.

“Fónix, o Will se calhar não vai ter tempo de chegar…” pensei. E bem pensei, pois já estava a fechar quando ele me ligou a dizer que tinha a carteira mas que não ia conseguir passar para o lado de cá hoje.

“Lamento imenso, a sério! Desculpa… fica aí num hotel, eu pago!”

“Na boa, não te preocupes.” À falta de uma mesquita a sério, estava um militar do outro lado da estrada com um megafone a chamar as pessoas para a reza, quando perguntei quanto custava o quarto mais barato. Quinze euros, disse-me! Caríssimo, especialmente para o tipo de quarto que era. Desses quinze euros, que eram, na verdade, seis mil ouguyia, consegui que baixasse para cinco mil, e depois de alguma conversa e risota para quatro mil e quinhentos. Sentia-me um bocado culpado por estar num hotel tão caro à pala do Will, mas depois lembrei-me que estava aqui porque lhe estava a fazer um favor. Acabou por haver uma cenita fixe com esta situação. “Hei ciclista!” disse o rapaz magro e louro que apareceu vindo de Marrocos. Era o Flo, um alemão que andava à boleia com duas miúdas. Nos cinco minutos em que partilhámos o mesmo ar semi-combinámos ir no comboio juntos na Segunda-Feira, o que me deixou com um sorriso na mente, a ideia de um pequeno grupo a meter-se junto Mauritânia dentro.

Enfiei-me no quarto a editar fotografias e quando o Boi (pronunciar em francês) ligou o gerador, tomei banho e vim jantar. O Will ligou-me há pouco – está do outro lado da fronteira num hotel.

21h33, s, 29 de Março de 2014
primeira cena do lado da Mauritânia

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