Textos

Foste

E assim foi o Kidus, mais uma vez. E assim fico eu no meu longe, sozinho. Duas semanas. Duas semanas sempre só duas. A mesma cama, a mesma terra debaixo da mesma tenda. Os mesmos olhos que me recebem a partir debaixo de uma pequena chuvada sempre anunciada. O branco dos mesmos avermelhado.

Nós os dois à boleia por aí fora. Sentados na mochila à sombra do calor sem piedade. A carrinha que pára, um salto através da poeira. “Observa, Kidus, observa.” Olho para ti. Estou em pé, mãos assentes nas grades da carrinha para não cair, vejo-te sentada ao lado e vejo-nos a abraçar aquela Guatemala por onde não sonhara passar, e desejo-te mais. Mas tenho-te ali. Consciente da brevidade, sonho-te para sempre. Nós os dois na cama de rede no Lago Atitlán com uma garrafinha de Quezalteca cada um a ouvir música, tu a adormecer, tu triste por não conseguires estar acordada. “Não tem mal, Kidus, não te preocupes.” Nós em Tikal à meia-noite rodeados de história e tu a chorar zangada por eu ter subido ao Templo I. “Desculpa, Kidus, não te queria assustar.” A nossa caminhada, a tarde toda, de San Marcos a Santa Cruz. “Estamos perdidos?” “Não, acho que não…” Tu agarrada ao pau-caminhante a usá-lo como se remasses sem pernas Acatenango acima. Nós os dois lá em cima a ver o Fogo a cuspir lava, eu, tu, contentes por estarmos a ver aquilo um com um outro. Partilhar uma visão de VIDA com a nossa VIDA ao nosso lado. Eu orgulhoso por teres conseguido. Eu com medo que não conseguisses horas antes. E depois tu cá em baixo, aquela luz que tanto aprecio como uma onda que me deixa completamente apaixonado, aquela alegria e aquele sorriso que valem mil viagens à boleia por todo o mundo.

Eu e tu, por cá e por aí. E eu agora, sentado no chão da varanda da Mariela, com o coração meio apertado com aquele meu medo característico que algo corra mal e não embarques. Essa estranha prova do meu amor, por sentir-me tão, ou mais, preocupado contigo do que comigo mesmo em tais circunstâncias que trazem um Pedro diferente… esse Pedro semi-ansioso pré-voo que rouba o lugar ao Pedro relaxado que conheces.

Um artista, ou pelo menos um artista como eu, se consigo ultrapassar a vergonhita de assim me tratar, quer sempre que o seu último trabalho seja melhor que o anterior. Num peculiar paralelo, quero sempre que a nossa última viagem seja melhor que a anterior. “Qual das viagens curtiste mais?… Índia, Gana, Camboja?…” “Hum…” pensas. Estamos a caminho da nossa última noite, passamos a praça central de Antigua. “Acho que o Camboja e a Guatemala ficam empatados em primeiro lugar” respondes, para meu agrado. Não levas desta viagem um anel de noivado nem aquilo que esperávamos que acontecesse. Mas levas tudo isto com que eu fico também e que tento registar – esta VIDA que vivemos, estes momentos que, num acesso totalmente megalómano, creio serem importantes para a humanidade. Não serão, certamente. Terei que contentar-me, e facilmente o consigo, que sejam importantes, como foram, para mim e para ti. Que a VIDA que me inunda em viagem seja sentida também por quem dá mais sentido à minha própria VIDA.

Até já, Kidus, já vou, é só mais um bocadinho.

Cidade da Guatemala, Guatemala

2h32, de Domingo para 2ª, 2 de Abril 2018

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