Textos

Estou em Bissau!

Estou em Bissau! Para chegar aqui, tive de fazer algo que ainda não tinha feito, mas que vou recuperar. Apanhei uma boleia… Ontem acordei, e enquanto esperava a Helene, empregada do Raphael, para lhe deixar as chaves, recolhi as minhas coisas e meti uma nova câmara-de-ar no pneu da frente. Já o tinha reparado demasiadas vezes, mas continuava a vazar. Os remendos que comprei em Tan Tan não são bons nem para lixo. A senhora chegou às nove e parti. Tomei o pequeno-almoço e fui até à fronteira, onde cheguei rapidamente. Os procedimentos foram também rápidos, e sem ondas. Tenho sempre receio que peçam dinheiro mas, até ver, nada de mais se passou. Uma vez do lado Guineense, senti logo a estranheza de falar português. Se ter estado na Gâmbia foi refrescante falar inglês, na Guiné não foi o mesmo. Aí foi como se eu não soubesse que havia gente que falava a minha língua e continuasse a ficar admirado. Acho, no entanto, que se fala menos português por aqui do que no Senegal, Mauritânia e Marrocos francês ou na Gâmbia inglês. Como tinha lido (ah, internet…) que a Guiné-Bissau era o segundo país em África com mais roubos, senti que estava meio suspeito, tipo estranhar dois ménes a pedalar muito tempo atrás de mim. Detesto sentir-me assim. Mas passou, passa sempre, e rápido. “Fixe, aqui o pessoal não me chama toubab quando passo, é como se me ignorassem” pensei. Pensei cedo demais. Ou esse ignorar era mais típico de São Domingos, a primeira cidade, ou eu não estava formatado para a palavra na minha própria língua. Porque daí a uns minutos… “Branco pelelé, branco pelelé, branco pelelé!” E ‘tá-se bem… durante algum tempo. Porque esta foi daquelas viagens na qual senti como se fosse morrer com a Matadeira, e nessas alturas quando se punham aos gritos a chamar-me branco, eu perguntava-me se deveria responder gritando “Preto, preto, preto!” para dar um bocado de perspectiva. Mas nunca o fiz. Primeiro porque não sabia se quem mo gritava o fazia com boa onda ou não. Depois porque, quer esteja feliz, quer esteja a morrer, não posso esquecer-me que, nem que seja a milésima vez para mim chamarem-me branco, é a primeira para aquela pessoa. Mas, pensando bem, no fundo se calhar estou a ser discriminatório ao achar que chamá-los de pretos seria mau. Porque a verdade é que, da mesma forma que eu sou branco, eles também são pretos. E talvez isto seja uma espécie de leve racismo… não, de racismo não, mas de discriminação, pois acho que é na boa eles chamarem-me branco, mas já não é na boa eu chamar-lhes preto, apesar de eu saber que nunca o faria pejorativamente. Por outro lado, há toda uma história de racismo, e é este contexto que me faz ter mais cuidado. Estou para aqui a dissertar como se o meu maior sonho fosse responder com “preto” quando me chamam de “branco” na estrada. Não é. Apesar de ter sido um dia muito duro, tive um bónus. Tinha chegado a uma terra qualquer com um mercado. Milhares de pessoas povoavam as ruas e outras centenas sentavam-se no chão, onde espalhavam o que queriam vender. Eu ia devagarinho, para não esbarrar em alguém e para ver se avistava um restaurante, quando, de repente, olhei para a esquerda e vi o quê? Uma data de caixas da Super Bock empilhadas fora de um café. Os pneus colaram ao chão! Saí da bicicleta, encostei-a à parede azul e entrei na tasca de estilo mais ou menos português, com um balcão dum lado ao outro, duas mesas com uns velhotes a beber vinho.

Bebi uma mini por menos de quarenta cêntimos e fui ver se almoçava. Mas não era tão fácil quanto no Senegal. Nesse país, em qualquer canto se avista um restaurante, por mais básico que seja. Ali, tive de me dar por satisfeito com umas sandes de ovos e quatro cones de uma massa com açúcar que nunca tinha visto, e segui.

Já tinha começado a sentir o que aí vinha. Primeiro o cansaço nas pernas, mas isso era normal. Depois um arrepio na perna direita. E outro. E outro. “Hei, não me digas que vou abaixo outra vez” pensei, já hábil em reconhecer os sintomas. Depois a sede que não morre. Depois um ouvido entupido. Depois o outro. Depois começo a espirrar. Por fim as tonturas. Faltava-me ainda sessenta quilómetros para Bissau e já estava a dar o treco. “Mas eu comi bem hoje! O que é isto?” pensava. Parava à sombra e encostava a cabeça ao guiador, mas nem sabia se era melhor andar ou estar parado, porque era quando eu parava que sentia como se fosse morrer. Deitava-me para descansar, mas não melhorava. Achava que conseguia. Achava que devia apanhar um táxi. Achava que conseguia. Táxi. Mudei de opinião dezenas de vezes. Estava determinado e segui. Cheguei à ponte de São Vicente e tive de a subir a pé. “É isso, devem ser as subidas” constatei. Desci a ponte e sentei-me lá à beira de umas pessoas que vendiam água. “Táxi?
Não.” E segui. Ia parando a cada dez minutos e via o tempo a passar. “Assim já não consigo ver o Benfica…” Queria mesmo chegar lá. E porquê? Sei lá, porque sou um labrego! Tenho a mania que sou forte, e acho que tenho de ser forte independentemente das circunstâncias e massacrar-me para no fim saber que sim, consegui. Mas não tem de ser sempre assim. Ser forte não é bem isto. Ser forte é fazer o que é preciso independentemente das circunstâncias. E, na verdade, eu não precisava de estar naquele sofrimento. Deitei-me no chão com a minha cabeça de algodão. “Tenho de libertar-me de mim mesmo, tenho de libertar-me de mim mesmo…” Levantei-me, a custo, e fiz sinal a uma carrinha de caixa aberta que, para meu infortúnio, parou p’rai a cinquenta metros.

“‘Tá cheio!”

“Na, dá… dá…” respondi, a apontar para a traseira, onde seguiam quatro pessoas, três ou quatro sacos de serapilheira e um cabrito. O homem lá acedeu e trouxe-me até à capital. Quando lhe perguntei quanto era, disse que era o que eu quisesse dar.

Tinha chegado, e não estava arrependido. Tinha feito mais sessenta quilómetros, chegando aos cento e vinte, desde que tinha começado a sentir a Matadeira, e a estrada que ainda teria pela frente até Bissau ainda seria difícil. “Esta estrada faço-a depois de amanhã” pensei. E esse “depois de amanhã” é amanhã, quando, depois de ir à embaixada da Guiné-Conacri, vou apanhar uma carrinha para trás e regressar de bicicleta. Andei até aqui com um saco de plástico, o mesmo (!), a fazer as vezes de alforge da frente porque, feito burro, não os encomendei a tempo e estava deserto para partir. O meu pneu da frente, que já foi o de trás, está nas últimas e perdi o suplente na Mauritânia. Não tinha ainda o que os meus pais insistiram que trouxesse e que também não consegui encomendar a tempo. Precisava de uma maneira de fazer chegar até mim tudo isso que me faltava. Foi quando fui contactado pelo Rui Fiuza que os acontecimentos se alinhavaram. O Rui veio dizer-me que se passasse por Bissau podia ficar na fundação da qual ele fazia parte – Fundação João XXIII. Agradeci e perguntei também se sabia de missões que viessem de Portugal e fui dar ao perfil do Nuno Rebocho, que veio numa caravana de onze carros e me trouxe os meus recém-adquiridos pertences.

Ontem, quando cheguei, liguei ao Du, que ajudava na fundação, e este veio buscar-me à Assembleia. A casa tinha um estilo mais ou menos português, onde cheguei durante a segunda parte do jogo. Banho, lata de feijoada, ver o Benfica a perder a final da Liga Europa.

23h21, 5ª, 15 de Maio de 2014
Bissau, Guiné-Bissau

Leave a Reply

Your e-mail address will not be published. Required fields are marked *