Desalinho [2009]Ficção

Escolhas

            Não sei bem o que fazer agora. Que pena é que a VIDA não venha com um manual de instruções… Olho à minha volta. A destruição que vejo ao meu redor entra em combate com a paz que ganhei nos últimos dois anos e que tento fazer permanecer. O peso da solidão faz-se sentir, mas tento, ainda que por vezes em vão, combatê-lo, com o tão útil “agir como se” (tudo estivesse bem), que vai perdendo as suas forças. O desaparecer do sentimento de isolamento no Mundo está à distância dum par de telefonemas, dum par de pedidos. Sento-me na cadeira e penso no paradoxo que é o facto de sentir que a única maneira de não me sentir tão só, neste momento, seria entregar de novo a minha VIDA ao destino cruel de uma agulha qualquer. Com tudo isso vêm os “amigos” de novo, e o sentimento de solidão é mascarado com pessoas que procuram o mesmo… ou com um tiro de heroína, que não o mascara mas afoga, assim como o faz com todos os restantes sentimentos. Penso se quero sentir o que sinto, ou se prefiro voltar a não sentir. Encosto-me para trás na cadeira, acendo um cigarro.

            O tratamento por que passei acabou faz uns anos… Depois de sair, a ilusão de que estava completamente “curado” ainda se prolongou por algum tempo. Diria mais do que o esperado, mas se esperasse que acabasse, não seria grande ilusão, creio, mas a consciência de que aquilo que sentia não era real. Na verdade, desde o primeiro dia até um dia qualquer (que vivi há pouco tempo) vivi acreditando que a droga fazia parte apenas do passado, sem me aperceber que, na medida em que o passado faz, por mais que não queira, parte de mim, da mesma forma a substância milagre também o faria. Nunca tive problemas com a bebida, ainda que tantas vezes mo fizessem acreditar nisso quando em tratamento. Nunca percebi muito bem. Não tanto os técnicos, mas os meus colegas residentes, pelo facto de terem problemas com o álcool, pareciam não perceber como outras pessoas, também toxicodependentes, não teriam necessariamente que ter. Certo é que me encharcava uma ou duas vezes por semana, mas nada do outro mundo, nada que uma pessoa “normal” não o fizesse. Sim, normal. Porém, apesar de, como dizia, não ter tido nunca problemas com o álcool, ainda me mantive longe da dourada tentação por alguns meses, prolongando o recorde longe dos copos para trinta meses.

            – Se já estiveste tanto tempo longe e tens estado bem, para quê beber, Niklas? – dizia-me um jovem vestido de branco, sentado no meu ombro direito.

            – Niklas… sabes que beber nunca foi algo com que tivesses problema, e ainda assim já andas sem isso há mais de dois anos! Para quê continuar? Não achas que já provaste algo a ti mesmo no que a isso diz respeito?! – contra-argumentava o ardiloso personagem empoleirado no outro ombro.

            Acabei por dar ouvidos ao diabinho, e numa saída com alguns dos poucos amigos que mantive, atrevi-me a beber uma cerveja. Recordo-me do desgosto terrível e incompreensível que senti dado o primeiro gole. Falando racionalmente, creio que não foi, efectivamente, algo terrível ter recomeçado a beber… todavia, algo dentro de mim ruiu, algo muito frágil e pequenino, mas que deixou mais frágeis outras estruturas cujas fraquezas sofro agora. Bem, já não sei se falo racionalmente ou não. Sei que não estava bem preparado para tal…

            Continuando… depois dessa noite, em que me emborrachei fortemente, outras noites vieram. Cheguei a assustar-me com o meu padrão, pois nas primeiras duas semanas fi-lo com muita frequência. Felizmente, depois destes quinze dias de festa e inconsciência voltei a um ritmo, suponho, aceitável. O que não foi aceitável foi o que veio de seguida.

            – Nem penses!! – dizia o anjinho, nem se esforçando sequer com mais argumentos.

            – Niklas, sabes que o teu grande problema era a heroína… e daí tens de te manter afastado. Mas um charro de vez em quando nunca te fez mal. E se não te aliviares com uma moca aqui e ali, vais começar a flipar e vais querer algo ainda pior que alivie esse flipanço… – “estou fodido”, pensava eu próprio ao ouvir estes dois argumentos, de alguém que me queria um desprazeiroso bem, contra alguém que me queria um prazeiroso mal. O pior era que a minha indecisão entre estes dois lados da acção deixavam-me numa ansiedade terrível, e essa ansiedade fazia-me pender nitidamente para o alívio dado apenas por um bom charro… Estranho como apenas se cem por cento certos de algo o “bem” pode vencer, e como a indecisão joga tão favoravelmente para o outro lado. Na verdade será sempre mais fácil estragar do que criar, ou manter algo bom, isso não é nada de novo, sabemo-lo bem…

            Apesar de nunca ter percebido muito bem a necessidade que nós, não apenas os toxicodependentes mas os humanos em geral, temos de testar os nossos limites, aprendi em tratamento que não teria de o perceber, desde que jogasse pelo seguro, tendo sempre em mente que a recaída poderia estar à espreita em qualquer esquina, caso não jogasse as cartas certas. O jogo de que disponho não é mau de todo, mas tenho poucos ases. Sempre achei que se não fizesse bluff e jogasse pelo seguro poderia sair a ganhar. Mas a piada de viver sem o bluff é algo a que nunca me habituei, e quem sabe nunca me habituarei.

            Sentindo todos estes receios, e necessitando de um aliado ao anjo que lutava, no meu ombro, por se fazer ouvir, marquei um café com Bjornstein, para que pudesse contar o que se estava a passar, os passos estúpidos que estava a dar e pedir ajuda para evitar que acabasse onde sempre acabou.

            – Como estás? – perguntei-lhe, assim que o vi, quase não lhe dando espaço para ser o primeiro a o fazer. Sentia-me algo irrequieto, batalhava com a necessidade de lhe contar que estava a um passo dum charro, a alguns de males maiores… Queria contar, mas ao mesmo tempo tinha um estúpido receio de estragar a imagem perfeita que Bjornstein tinha de mim, de não ouvir mais os rasgados elogios que me tecia, com que adornava o meu percurso na Comunidade Terapêutica…

            – Estou bem, muito bem, felizmente! – respondeu, cheio duma energia que apenas me fez querer espancá-lo. Sentia-me mal em sentir o que sentia, mas a inveja que senti deixou-me quase tonto. Via-nos a nós os dois, sentados no Mono, um cheio de confiança e com tudo a correr perfeitamente, e outro, eu, sem saber o que se passava, porque se passava, e acima de tudo, o que se passaria. – E tu, como estás? – devolveu. Queria dizer o que ia dentro de mim, mas não consigia. Não queria verbalizar a minha estupidez. Quando se vive constantemente a fazer merda, é-nos estranho começar a agir bem… é-nos estranho pois ouvimos palavras que não sabíamos já existir… Palavras de afecto, incentivo, de amor. O espanto é tão grande que somos inundados por um medo terrível de o perder, como cada elogio e prova de afecto seja a constante lembrança de que só temos mais uma oportunidade, mais uma cartada… Nem o simples facto de ter aprendido a pedir ajuda me salvava. Via tudo e todos, a excelente equipa técnica com quem trabalhei, a pedirem-me para eu pedir sempre ajuda, e da maneira mais estúpida e inconsciente, dava voz apenas ao que queria ser, esquecendo quem estava realmente a ser…

            – Estou bem, corre tudo perfeitamente, se queres que te diga! – ouvi estas palavras abandonar a minha alma, ditas de uma forma impressionante. Tal era o meu entusiasmo que quase me acreditava no que dizia…

            Ficamos por ali cerca de uma hora mais. Niklas bebeu uma Coca-Cola e eu, apesar de me apetecer uma cerveja, fiquei-me por um café. Não falamos muito mais acerca de como estávamos ou deixávamos de estar, e devo confessar que foi bom, pois consegui, ainda que por momentos, afastar-me um pouco de mim. Nada como a capacidade de não pensar…

            Foi nessa mesma noite que chegou o momento. O momento em que vi que, ainda que a droga fizesse parte do passado, nem por isso deixava de ser parte de mim… e que se assim era, um charro, apenas por ínfimos e insignificantes instantes, faria parte do presente. Uma vez acabado, quem sabe conseguisse arrumá-lo, quieto, na gigante caixa na minha mente, que era a caixa do passado.

            Não me senti arrependido de imediato. Não precisei de mais que quatro passas para me sentir instantaneamente a voar. Os meus braços ficaram mais leves, o meu cérebro mais frio, os meus temas de conversa mais sem sentido. Porém, toda esta ausência de sentido e todo o reviver destas sensações foi algo que apenas me fez fumar mais, e mais, e mais, até que adormeci no sofá… Quando acordei não sabia onde estava. Recordava-me com dificuldade de como tinha ido parar àquela festa, àquela casa, àquele charro…

            Se dantes, das primeiras vezes, me sentia bem e como um menino rebelde, desta vez fui acompanhado até casa por um sentimento de culpa pesado e lúgubre. Tinha ansiado por aquele momento. Todos temos um mecanismo de auto-destruição, e funcionando movido por esse mesmo mecanismo, antecipava e rejubilava com esse sentimento de culpa que me deixava com uma dor inconfundível no peito. Todavia, uma vez que vem, não tenho como dele me livrar. Sentia-me como a desilusão personificada, como alguém sem valor nem direito à felicidade. Sentia-me, acima de tudo, profundamente assustado, pois sabia onde estes tipos de sentimentos geralmente me levavam…

            Não quero ver ninguém, não quero ver nada senão a minha parede nua que nada tem para me oferecer. Sinto-me já recaído, sinto que o vou fazer a qualquer momento e, sendo assim, penso… porque não o fazer de imediato e poupar-me desta merda toda? Porque não ir directo ao assunto e não sofrer mais? Porque não acabar com estes pequenos passos e entregar-me de uma vez por todas. Tremo bastante, sinto-me nervoso, ansioso, excitado. Vou ao quarto-de-banho, estou branco como a neve, tenho uma expressão de pavor que me leva para o passado. Tanto tempo, tanto tempo! Não posso ter passado tanto tempo para sair, e voltar a entrar num par de semanas… Preciso de ajuda mas não a quero ter, ninguém me consegue ajudar! Vomito o pouco que tenho no estômago, sento-me no chão do quarto-de-banho a tentar reunir-me por uns segundos. Levanto-me, tenho a porta à minha frente. A porta vai levar-me à estação, o meu olhar vai pedir tudo o que preciso por mim. Tenho a porta à minha frente e o meu telemóvel dentro do bolso. Penso na ajuda que não quero ter, penso que tenho de decidir. Talvez dramaticamente, vejo a minha VIDA reduzida a duas opções, reduzidas a um pequeno momento, que está a acontecer agora mesmo. Não é o passado, não será o passado mas um presente lamacento que se estica, misturando tudo de uma forma agoniante. Escolho.

            – Bjornstein, preciso que venhas aqui, não estou bem…

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