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Tu Aí

Noutro dia fui viver contigo. A casa estava mal, havia muita poeira. Havia peças de mobília umas em cima das outras. Havia um dia, e dois e três e uma urgência mútua de embarcarmos no pedaço que, correndo bem, terá jovens dedos que se esticam para tocar na tona da água como, no mesmo sítio, a sua avó o fez. O meu ser habituou-se ao teu. Deixou de te ver como alguém que só amava, passou a ver-te como quase tudo o que via. O tal olhar marítimo. Uma presença contínua, uma pré-questão acerca da eventual dificuldade de viver com alguém, e de alguém viver comigo. Tudo pequenos testes que vimos passar sem noção de que havia qualquer tipo de nota a ser dada. Testes que, sem querer, passámos tão bem que, de repente, era tudo o que conhecíamos. E um abraço, e dois, e uma linguagem nossa que, estranhamente, me aloja totalmente no teu coração quando a falas. Um estar aqui agora, meu amor, mas sempre a pensar em ti. Um aborrecimento entusiasmante de, sempre que falo de ti, referir que te tenho como a melhor pessoa que conheço, e que me transporto em direcção a tudo o que mereces que seja.
 
São quase quatro, três e quarenta e tal.. já passou. Já viveste o aniversário do Pardal, já foste para casa, já dormiste. E eu também – vivi aquele pouco que cá tenho. Passadas algumas jornadas mais difíceis destes dias, tenho-me visto mais ou menos como sou. Aquele gajo de mochila com a capa que tu sugeriste comprar, cor de laranja, a cobrir a mochila atrás; com a Eastpak à frente, com a capa de chuva. Com as gotas a escorrerem, aquela mão que esfrega a cara e agarra a pera como se terminasse aí o céu chuvoso todo… e aquele dedito. Aquele polegar que tanto curto, aquela mão que se deita paralela ao chão, aquela tentação desta mesma de encontrar a sua esquerda e, em súplica, pedir que nos levem… um chisquito. Ninguém nos leva em súplica. Sei que não. Ainda assim, por vezes, peço-o.
 
Estamos tão longe um do outro. Quase sinto o calor das poucas vezes em que não vamos dormir ao mesmo tempo e aterro naquele convite de tudo o melhor que existe. Estamos em Dezembro, provavelmente estás de pijama. Deves ter um ou dois gatos, quiçá uma cadela, à tua beira. Hoje é Sábado e o Sábado leva-me, de imediato às madrugadas em que chego a casa e assim entro em todo este convidativo panorama que sem querer criaste. Sinto os teus tremeliques de sono e gostava de acordar a meio da noite com os mesmos. Mas aqui estou, na Costa Rica, à tua espera.
 
Sou eu. Sou só eu. Só posso ser eu.
 
Sinto-me totalmente individual da maneira mais libertadora que já experienciei. E tudo por saber que, seja eu quem seja, faça o que faça, vá onde vá, não te tenho como um grão na asa mas como a própria asa que me permite esclarecer este céu todo e regressar ao ninho. Amo-te.
 
04.07, s, 21 Janeiro 2018
Heredia, Costa Rica

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