Desalinho [2009]Ficção

Saltos Altos de Tacão Amarelo

Banda Sonora

 

Acordei à espera de o ver. Adormeci sem o fazer. O rádio toca as músicas de trás para a frente e o sol está a chover. Penso que devo estar com uma moca do caralho, mas não me importo. Gosto de ouvir o som quase satânico das músicas em desalinho. Abro a porta do chuveiro e cumpro o meu ritual de todos os dias, cortando o cabelo e pintando os lábios. Parou de chover, acho que já não levo lancheira.

Saio à rua, completamente nua, e sinto-me uma entre tantas outras, já que toda a gente está a falar ao telemóvel. Não me importa. Penso em vê-lo mas sei que ele ainda não ceou. Quando entro no barco, peço ao taxista para me levar para um sítio qualquer. A noite está calma, quero pensar, mas pensar longe daqui. Quando chego, abro a porta do elevador e sento-me à lareira. Estou onde quero estar, mas penso novamente que, depois de alcançar este sagrado poiso, já não o quero, e o vinho está a estragar. Puta de mania, de querer o que não tenho, de querer estar onde não estou, de estar a parecer o Variações, e do vinho estar a estragar. Mas nunca se sabe. Abro a janela e saio pelo varão de emergência, directamente até ao rés-do-chão. A única coisa constante no meu pensamento é vê-lo. Vou ao cemitério para o ver, as pessoas estranham um bocado alguém nu no cemitério. Não me importa. A campa dele é longe, mas ainda tenho sumo. Quando chego a campa está no mesmo sítio mas não tem nada escrito na lápide. Estranho. Eu estranho, e aquilo é estranho. Não que o meu dia esteja a ser estranho. Escavo um pouco a tua campa, dói-me as unhas, e descubro a passagem secreta. Tenho medo de bichos mas tento entrar. Quando saio no armário do quarto dos teus pais, vejo o teu pai no mesmo quarto a ver raparigas na televisão a fazer ginástica. Acho que eu o vejo mas ele não me vê. Acho que está excitado.

Saio do quarto e a floresta adensa-se. Tenho de afastar as canas de bambu e usar um protector solar. Vejo a tua mãe ao fundo a lavar roupa na água lamacenta do pântano. Grita. “Quanto mais lavo mais suja está!!!” Acho que ela é que quanto mais tempo passa, mais louca está. Nunca soube ultrapassar bem a tua morte como eu, nem o facto de querermos casar em Abril. Abril, águas mil. Diz.

Ainda penso se devo falar com ela, mas parou de chover. Abro a porta do pântano e saio para a rua. Dou um passo e estou num autocarro. Toda a gente está a pensar alto e eu própria não consigo pensar. Quero-me sentar mas as pessoas tiram palavras da cabeça e ocupam os bancos. É incrível, e impossível! “Posso-me sentar?” “Não porque você tem cara de comunista!” – eu nem ligo a política!! Saio na primeira paragem e há leões na rua. O céu está amarelo e vejo um espelho ao fundo. Caminho lentamente, doem-me os pés com as picadas dos escorpiões. Sinto-me sonolenta, deve ser do café. Ainda penso que gostava de te ver. Aproximo-me do espelho e vejo-te do outro lado. A tua cara é a minha. Tento dar um beijo no espelho, mas tenho cieiro e doem-me os joelhos. A tua cara é a minha, e eu não te vejo em lado nenhum! Tento dar um beijo no espelho, mas tenho cieiro!!

A tua cara é a minha, a tua cara transforma-se completamente na minha, e vejo-me ao espelho. Tenho alguém ao lado que não sei quem é. As minhas pupilas estão grandes. Quero uma moca maior, e quero ver se te vejo.

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