Textos

Que Dias

Que dias bons tenho tido. Dias em que sorrio, em que estou presente em mim, em que consigo viver apenas tudo o que me rodeia sem pensar no fim de nada. Dias em que sinto que estou vivo e sereno. Dias em que a serenidade tem tons de rebeldia e emoção, não se sabe como. Dias em que paro a Bicicleta, respiro fundo, fecho os olhos um bocadinho e penso “Estou aqui. Eu estou aqui. Agora mesmo.” Dias em que não me esqueço de viver, dias em que existo tanto, tanto, que me faz querer chorar.

Hoje. Hoje cheguei a considerar ir até à Namíbia. Mas ia chegar tarde, portanto decidi ficar-me pelo velho costume de passar fronteiras longe das horas da escuridão. Segui então em direcção a Ondjiva, nas calmas. Ao almoço dei-me ao luxo de cortar umas cebolas e uns pimentos em vez de me contentar apenas com uma lata de sardinhas e polpa de tomate. Comi ali debaixo daquela árvore, sentado naquela tronco cortado, com pessoas que não falavam português a aparecer de vez em quando.

A ideia era acampar numa povoação qualquer perto da fronteira. Não tão certo de que haveria povoações, andei uns quilómetros e olhei com novos olhos para aquelas espécies de aldeamentos que por vezes apareciam. A toda a volta, troncos de árvore ao alto, lá dento cubatas com telhado de capim. Estava reticente. Talvez fossem pessoas tanto à margem da sociedade que me rejeitassem a estadia, não por mal mas por receio.

Arrastei a Bicicleta pelo areal, aproximei-me. Uma porta estreita mostrava um longo corredor de mais paus ao alto. Sem saber se deveria entrar ou não, esperei um minuto, e nas minhas costas apareceram um senhor de chapéu de couro e chiba longa, uma senhora desdentada com touca africana e sorriso onde cabiam marinheiros, e uma outra que se esquecia do português e falava comigo na língua local. Disse ao que vinha e perguntei se podia montar a tenda lá dentro, alegando que lá fora podia sempre aparecer um animal. Percebo agora que o que eu queria era conhecer este tipo de espaços, este tipo de gentes. Os animais eram as menores das minhas preocupações. Com a pergunta veio a surpresa. Apercebi-me que a
senhora da touca africana era aquela que teria algo a dizer. Sem nunca deixar de sorrir, deu-me a entender que não percebia muito bem porque é que eu haveria de lá querer ficar e no segundo seguinte disse “Claro que sim.”

Entrei, passei o corredor e ao fundo, um pouco à esquerda, dois pequenos jangos. À direita o canto onde pedi para montar a tenda, não sem insistirem em alisar o terreno arenoso. “Não é preciso, obrigado.” Enquanto montava a tenda, perguntei se havia água para tomar banho. Estava a acabar de montar o meu
palácio quando o senhor de chapéu de couro me disse, quase pedindo desculpa:

“Você quer água agora? É que nós estávamos ali a conviver.” “Não, não, é na boa, não se preocupe” respondi, ficando-me no ouvido a bela palavra: Conviver.

Metia as coisas dentro da tenda quando passou a senhora com uma grade de N’Gola. Ofereceu-me uma garrafa, dizendo que não estava tão fria, “ali” é que estava fria, apontando para lá do embondeiro, lá fora. “Eu vou já lá ter, obrigado” respondi. Passei o embondeiro e encontrei-os sentados em cadeiras de plástico ao lado do estabelecimento da senhora, uma divisão com chapa de zinco. Lá dentro um balcão, cervejas em baldes de água fria, vinho, salsichas, latas de atum e pastilhas elásticas. Comprei uma N’Gola e sentei-me com o pessoal. Lá atrás uns rapazes jogavam à bola. Olhava para eles e via as balizas de pau e, ao fundo, todo um cenário de árvores. Onde é que eu estava? Passei duas horas com os meus amigos. Depois de ter bebido um copo de vinho de palma, a senhora veio com uma garrafinha de vinho português (O Magnata) e quando perguntei quanto era, disse que era oferta.

Só havia sorrisos ali. Apareceu o António, camionista, que ia buscar cebolas à fronteira no dia seguinte para levar para Benguela, o filho da senhora, o filho da outra, os futebolistas cansados. E eu sentia-me bem. Encostava-me para trás e apreciava o facto de falarem entre si em português só para eu perceber, saboreava o vinho que deixava borra no fundo e ia sentindo o ar arrefecer, o sol a desaparecer.

Quando voltei, a senhora veio perguntar se eu queria água quente para tomar banho. Disse que não, mas quando fui para o quarto-de-banho que me improvisou entre uma cubata e a parede com dois lençóis de cada lado, percebi que me tinha aquecido a água de qualquer maneira. Tomei banho com uma linha cor-de laranja e azul escura lá ao fundo dando lugar ao negro, e tudo estava bem, tudo estava calmo. A noite sentou-se à mesa e eu sentei-me no tijolo que me deram, à frente da tenda para cozinhar.

E agora estou na tenda a curtir tanto esta simplicidade de VIDA. Sem qualquer tipo de condescendência, aprecio a simplicidade desta gente, que dorme em casas de madeira e me pergunta se vou acordar às quatro da manhã quando digo que vou acordar cedo. Sinto que vivo plenamente as razões pelas quais viajo, pelas quais existo.

20h05, 4ª, 3 de Junho 2015
Lucando, Ondjiva, Angola

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