Desalinho [2009]Ficção

Quase Consigo

            As pessoas passam por mim na rua e mandam piropos. As pessoas passam por mim na rua e olham para trás depois de eu passar. As pessoas passam por mim na rua e comentam umas com as outras. As pessoas passam por mim. Os comentários ficam e colam-se à minha figura, à imagem que sou forçada a ver, de algo deslocado que apenas quer chegar a ser.

            E eu? Que faço senão perseguir a imagem e o ser que sempre quis ter? Que faço senão ter, ou tentar ter, a minha própria VIDA? Que faço senão evitar ter a rudeza que todos os dias me cospe na cara, nas palavras de quem me olha e não entende, de quem me olha e não quer nunca entender? Que fariam uma vez que tentassem entender a liberdade que quero ter? Quem sabe perceberiam e depois teriam de olhar para si, ver os seus próprios defeitos… suponho que isso seja terrível.

            Passo pelas pessoas na rua e continuo na minha VIDA. Passo pelas pessoas na rua e não mando bocas, piropos, não comento nada com ninguém, não fico a olhar. Eu passo pelas pessoas. Apenas.

            Poderia ser tudo normal, até lisonjeador. Mas se o que sinto já me massacra todos os dias, porque têm as pessoas de mo lembrar todos os segundos, todos os momentos? Porque não me deixam ser apenas eu própria? Os únicos momentos em que me sinto realmente uma mulher são quando estou em casa, sozinha, longe de todos os olhares condenadores, julgadores. Não sei porquê, tive o azar de nascer no corpo de um homem, apesar de sempre me ter sentido uma mulher. Nunca gostei de jogar à bola, de usar calças, de brincadeiras parvas.

Como me recordo da primeira vez que a minha mãe me apanhou a vestir as roupas dela… Estava no seu quarto, completamente vestida com as suas roupas, debruçada sob o espelho, tentando aprender a usar um batom. Todo o meu mundo era meu nesses momentos, quando a confusão que mais tarde se instalaria ainda não era nada senão um desejo tornado realidade. O seu olhar abriu-se em dois mundos, a boca esperou pela voz mas o seu tom apareceu vestido de algo que não era escândalo. Por isso mesmo sempre acreditei que já o soubesse, ou pelo menos esperasse, muito antes, quem sabe, de eu própria o fazer. Claro que tentou fingir todo e espanto e surpresa, como se eu, tentando ser eu própria, estivesse a contribuir para o mundo acabar um par de dias mais cedo. Alertou-me da gravidade do que estava a fazer, fez-me ver como era terrível se em vez dela fosse o meu pai a descobrir-me, fez-me ver um sem número de variáveis que se acumulavam na minha mente aos pares desalinhados, tentando encontrar um lugar onde assentar que se afigurava desconfortável e estranho. O que me saiu foi apenas dizer que estava a brincar. Era notório que aparentemente estava a fazer algo de muito mau, e por isso mesmo senti a necessidade de trazer alguma consciência a esse acto despido de maldade. Quem magoava em querer ser apenas como queria ser?

            Tinha dez anos quando o meu pai me apanhou assim pela primeira vez. Não disse nada… tampouco o precisava. Se os olhos da minha mãe se abriram tanto quanto possível sem parecerem ameaçadores, já os do meu pai pintaram-se de vermelho, num rasgo de sangue fruto de, imagino, o seu coração se ter aproximado do colapso. Por isso mesmo não precisou de dizer nada. A sua expressão trazia consigo a mais nítida sugestão, a maneira como me sovou, espancou, a mais cruel confirmação. Porém, mais uma vez, vi o seu ar de surpresa apenas no que estava a ver, muito menos no que se estava a passar, como se sempre achasse possível que mais tarde ou mais cedo fosse ver o que viu, mas simplesmente… não naquele dia. Acho que foi mais ou menos nessa altura que comecei a perceber que nunca mudaria, pois apesar da pele rasgada pelo cinto não se ter nunca recomposto inteiramente, nem por um momento me arrependi ou reflecti sobre o que tinha feito como algo de mau. A confusão mantinha-se, ainda que timidamente, mas nunca dava lugar ao arrependimento fruto da sua manifestação.

            Tinha dezasseis anos da segunda vez que o meu pai me apanhou. As cicatrizes nas minhas costas ganharam alguma companhia, acabei por passar a noite no hospital. Um erro de cálculo levou a fivela de metal do cinto de couro negro rachar-me a cabeça. O meu pai apenas me voltou a dirigir a palavra alguns seis meses depois, mas tinha-o já perdido para sempre fazia muito tempo. As súplicas de minha mãe, tentando ilusoriamente restaurar algo que estava já perfeitamente destruído, ecoavam nas paredes frias. Como da primeira vez em que me viu, não me arrependi do que fazia, mas chorava como nunca o tinha feito. O silêncio da incompreensão é mais pesado que o silêncio de uma dor passageira. Comecei a ver a maioridade como um objectivo que parecia arrastar-se, nunca vir… Cada dia tinha quarenta e oito horas. Porém, quando tanto se espera a ilusão da independência aos dezoito anos, cai-se facilmente, pela milésima vez, na realidade de que não há ingredientes secretos de felicidade. A VIDA é o que é, e nem sempre, quem sabe no meu caso nunca, se pode fazer algo mais por um sorriso.

            Mas vieram. Vieram os dezoito anos e com eles a universidade, com eles um trabalho num bar gay em Lisboa, com eles o adeus de casa, dos olhares conhecidos. Abandonei as bocas com as minhas alcunhas, mergulhei no metróple anonimato. Ficaram os olhares, algumas piadas, ficaram as pessoas que passam na rua mas me esquecerão nos próximos minutos. Talvez seja tudo que possa alguma vez almejar, mergulhar bem fundo no desconhecido e por aí permanecer. Quase consigo ser quem quero, quase consigo viver comigo como se sempre me tivesse tido, sendo apenas por vezes arrastada para isso tão terrível que é a nossa realidade não ser a de toda a gente. Quase consigo ser eu… quase.

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