Estórias em Vão [2007]Ficção

Provocativa

Merda, não consigo dormir! Levanto-me da cama, procuro nos bolsos das minhas calças o meu quase vazio maço de tabaco e vou à varanda. A caminho apercebo-me que o “quase vazio” é mesmo “vazio”. Abro a gaveta da mesinha de cabeceira de Elsa, que dorme, ressonando baixo mas irritantemente. De repente, paro um pouco. Ali, em pé, a olhar para ela. Meu Deus, como engordou desde o casamento! Dorme quase ocupando a cama toda, boca aberta, presu­mo que um fio de baba escorre para algum sítio onde mais tarde me vou deitar… ouço o puto a falar sozinho enquanto dorme no quarto ao lado. Não fora ele já tinha ido embora há muito tempo…

De tronco nu e calcas de pijama, entro na varanda, saio por uns momentos do meu mundo. Acendo o cigarro e vejo-a. Ali está ela, como tantas noites. Tão agradável como a brisa que me beija o corpo no momento, ali está ela, seminua, com perfeita consciência que a estou a ver. Ensaia os mesmos movimentos de sempre, dançando ao som de, suponho, uma inexistente música. Magra, não demais, cabelos pelos ombros escuros, pele de uma tez que me faz adivinhar tardes de praia. Não consigo fazer com que aquela imagem não me abale… Eis que, como tantas vezes antes, vira-se para mim. Consigo ver que está, tal como eu, de calcas de pijama e tronco nu. Levanta o braço, estica o dedo e gesticula com este, fazendo gestos chamando-me, à medida que balança suavemente as ancas, dançando qualquer coisa… Olho para ela… Espreito por detrás do ombro… Olho para ela, olho para Elsa. Porque não? O amor entre nós já morreu há tan­to tempo, porque não?40

O cigarro que atiro do alto do meu nono andar morre passados alguns segundos. Entro no quarto, visto qualquer coisa, olho-me ao espelho, e vou. Porque não? Merda! Porque não?… Estou nervoso. Não vejo o que pode acontecer, penso antes no que me pode aconte­cer. Salvar-me desta VIDA de merda a que infelizmente me habituei. Este marasmo que me faz doer os músculos todos, esta minha exis­tência, cada vez mais desprovida de significado…

A porta do prédio esta aberta. Chamo o elevador, que demora al­guns trinta segundos a chegar. Entro no elevador. Carrego no botão numero oito. Quando chego, penso qual será a porta, ganho cora­gem o toco à campainha. Oiço qualquer coisa que não sei distinguir se são os seus passos ou o meu coração a bater desenfreado. A porta abre-se. Por detrás desta, ela aparece, com a parte de cima do pijama vestida, o cabelo em desalinho e um olhar de sono mal disfarçado.

– Desculpa… Sou o vizinho da frente, há muito tempo que me chamas… – Digo, sem saber o que dizer.

– Desculpe, não o conheço, e não sei a que se refere. – Diz, fe­chando a porta no instante seguinte.

Fico alguns segundos no mesmo sítio, a olhar para a madeira escu­ra da porta. De repente dói-me a garganta ao fundo, aquela sensação de desgosto e desilusão… Rodo nos calcanhares, apanho os bocados de mim que ficaram pelo chão e vou-me.

De volta à mesma VIDA de sempre…

Sai de Mim

Por mais vezes que te peça para desapareceres da minha VIDA, insistes em passear ao meu lado, no meu corpo, a cada segundo, cada instante que passa… Quando acordo, acordo cansado. Cansado de te ver nos meus sonhos e saber que nunca passarão disso mesmo… Cansado de dormir na mesma cama onde tantas vezes tu dormiste e foste ao céu…

Acordo, vou ao WC, e mesmo ao olhar para o espelho vejo marcas 41

de ti. Vejo marcas de ti, ao não ver marcas em mim de felicidade. O brilho dos olhos desapareceu, o sorriso dos lábios morreu.

Visto-me a custo (queria dormir mais) e vou para a mesma VIDA de sempre. Na mesma VIDA de sempre, vens ter comigo. “Podemos ser amigos na mesma”. Que lata… Como podemos ser amigos na mesma, se de cada vez que olho para ti me lembro de ti, com ele (?)…

– Miguel, que fazes aqui?

– Que faço aqui? Que fazes tu aqui? E quem é esse?

– Miguel, tem calma, não faças uma cena!

“Não faças uma cena”, diz-me ela. Vejo a que pensava ser a mulher da minha VIDA, a beijar intensamente e de mão dada com um gajo que nunca vi na VIDA, e pede-me para não fazer uma cena! Volto costas e vou para casa chorar. Como me amaldiçoei nesse dia! Como tive pena de acreditar, fora assim tão ingénuo?

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