Desalinho [2009]Ficção

Não

            Não me perguntes como me sinto se não te sei responder. Sinto o meu estilo crescer, sinto-me mudar, sinto a minha pessoa saltar níveis, perdida à procura daquilo que eras para mim. Sinto a minha alma à deriva em sentimentos que pareço já não ter. Por isso não quero que me perguntes nada. Silencia-te mais um ou dois anos, quem sabe com o passar do tempo esqueço o que é, na verdade, sentir, e não preciso de te mentir. Quem sabe com o tempo esqueço quem sou, quem fomos, e não seja nada mais do que a imagem ilusória que guardamos num sotão qualquer.

            Não fales comigo nem me questiones. Continua a brindar-me com a tua diária presença, os teus lendários carinhos e a tua infinita atenção. Sê como sempre foste para mim por favor. Não mudes, ou terei de pensar se ainda gosto de ti. Não mudes pois assim é mais fácil. Não mudes para poder viver agarrada a tudo o que juntos criamos, sem consciência da VIDA que sempre aconteceu fora da nossa rotina…

            Não me faças sentir velha, em desalinho com o que quero. Não me faças sentir que o vestido de princesa que me ofereceste quando nos conhecemos já não me serve. Não me faças sentir que nada mudou, ou que tudo mudou… não me faças sentir de todo, e quem sabe assim o sorriso que vês se possa mais aproximar da falsa realidade que é o que vai dentro de mim. Não me faças sentir que as rugas se aproximam e o sentimento esvanece. Não me faças, sobretudo, fazer o que agora faço, colocando as tuas defeituosas qualidades num papel e olhá-las com tristeza.

Não quero fazer nada mas as linhas aparecem diante de mim. Sento-me frente à máquina de escrever, o teu vivo corpo a dois metros, no mesmo sítio de sempre, com uns indesejados pontos de interrogação a circundá-los ávidos, quais abutres esfomeados. Não quero fazer nada mas as perguntas que trago comigo e tento afogar são demasiado pesadas. Não as consigo fazer ir embora, não me consigo, acima de tudo, fazer ir embora. A porta é demasiado pequena e o futuro demasiado incerto. Olho com saudades para o passado em que não pensava, em que apenas existia e tudo era perfeito. Quero sorrir de boca cheia, sentir que te amo, quero, como nunca, não pensar em mais nada a não ser no que fazer no próximo segundo…

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