Estórias em Vão [2007]Ficção

Mudar

ELE

Imagino quantas vezes o nosso destino se terá cruzado… Quantas vezes a vi passar por mim no comboio, na rua, neste ou naquele bar… Sem querer, acabei por saber em que estação sai, em que estação en­tra, que bebida pede quando sai, que perfumes usa. Era impossível não reparar nela. Alta, pele branca e delicada, olhos grandes e azuis, qual mar em euforia, e cabelo longo, liso e negro como o céu numa noite de tempestade. Vestida sempre a preceito mas simples, atraves­sa algumas vezes por dia a minha VIDA e deixa-me a suspirar…

É impossível que ela também não tenha reparado em mim. Tro­cámos olhares, vez por vez, embora menos dos que desejava. Típica finlandesa, não passa cartão a ninguém. São assim estas mulheres, de dia não ligam nenhuma, de noite transformam-se, desinibem-se. Pena não a ter encontrado já numa altura de desinibição, podería­mos efectivamente… falar! Sim, falar! Há quanto tempo que a vejo passar por mim, e nunca falamos, nem sequer perguntar as horas…

ELA

Está ali ele outra vez, deveria falar com ele a dizer-lhe para parar de olhar para mim? Não posso tocar no cabelo, atender o telemóvel ou fazer o que quer que seja sem o ter a observar, sinto-me com dois olhos gigantes nas costas! Podia simplesmente evitar apanhar o mesmo eléctrico que ele apanha, mas não acho que faça sentido eu mudar os meus hábitos por causa de uma coisa má que outra pessoa faz! Sempre fui assim, como meu sentido de justiça muito presente e capaz de saber e seguir os meus direitos, ainda que isso faça com que sofra a minha parte…

ELE

Sábado… Hoje não a vou ver seguramente, ao fim-de-semana não há rotinas. Saio de casa, com o objectivo de ir almoçar à pizzaria perto da estação, apanho o quatro, o eléctrico que me leva ao centro, e surpreendo-me logo de seguida… Sim, eis que a vejo sentada no banco de trás, a ler um livro. Será que ainda não acabou de ler o an­terior? Pois penso que esta coincidência tem de querer dizer alguma coisa, algum sinal de forças superiores, e decido falar com ela…

– Quem diria que em Março ainda teríamos temperaturas nega­tivas, hã? – digo, com um sorriso autoconfiante que mostra que o objectivo da minha conversa não é propriamente a temperatura.

– Quem diria que no século XXI ainda teríamos palhaços que perseguem as mulheres, hã? – diz, com um sorriso sem significado que mostra que o objectivo dessa resposta não é propriamente o meu bem-estar. E consegue.

Naquele momento não sei bem como agir. Fico ali parado uns segundos, que parecem horas, sem saber o que dizer ou para onde ir. Volto costas quando o consigo fazer, e sento-me no primeiro banco que aparece. Penso se terá razão e descubro que não. Nunca fiz por estar com ela, meu pecado foi apenas ser observador e admirador duma beleza como a sua.

Sempre fui uma pessoa com um bom tacto, boa educação, mas naquele momento cago para isso tudo. Então, levanto-me, dirijo-me a si. O seu olhar é de desprezo, mas encontra o meu. Neste momento digo, devagar para perceber bem: Vai p’rá puta que te pariu!

ELA

Às vezes precisamos que nos agarrem nos ombros e nos abanem com toda a força, ainda que só com uma frase e um olhar, para que realmente percebamos certos aspectos da nossa personalidade.

Quando ele se levantou outra vez e caminhou na minha direcção, a primeira coisa em que pensei foi que viria a rastejar a pedir para eu lhe dar uma oportunidade de tomar um café. Oportunidade que eu nunca daria. Não me passava nada pela cabeça a não ser ele a pedir-me algo. Contudo, a firmeza com que disse o que disse fez-me cair tudo. Não pelo que disse em si, disso toda a gente ouve vez por vez, mas a segurança e sinceridade com que o disse fez-me sentir suja, estúpida e, acima de tudo, má!

Às vezes vivemos no nosso mundo, pensamos que as outras pes­soas só existem para nos servir, ou admirar, mas nunca para cruzar a linha imaginária que estabelecemos na nossa mente. Essa linha divide quem merece de quem não merece, coisas que decidimos con­forme nos apeteça, não conforme o que fazem por nós. Quem me garante que o rapaz realmente me estava a seguir? Não poderia ser que apenas tivesse os mesmos horários que eu, e que eu, de me sentir a maior, sentisse que me estava sempre a olhar?

E assim me quedei com este pensamento até ao fim do dia dis­posta a mudar… Não falei com ele, tinha vergonha da minha própria reacção, que apesar de acutilante, fora tão cruel. E assim as pessoas, com palavras ou olhares apenas, conseguem mudar, ou pelo menos fazer tremer, toda uma estrutura de outra…

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