Desalinho [2009]Ficção

Movimentos

XX

Dançamos. Suavemente. As palavras saem do meu corpo e tocam nos teus cabelos. O teu ritmo embala o meu e o meu ama o teu. Peço ajuda às minhas emoções, para se guardarem mais um pouco e não estalarem a minha passividade. Os teus braços são fortes mas o teu toque é delicado. Não vejo o teu olhar mas sinto-me pacificamente invadida. Viajas pelas minhas linhas com a ponta dos teus dedos, aproximas os teus lábios dos meus. Sinto a tua respiração quente misturar-se com a minha e o meu beijo pede para nascer.

            Afasto-me. Vejo-te no meio da pista de dança, imponente e solitário, a pedir, sem o fazer, a minha companhia. Óculos escuros. O misterioso ar de quem apenas veio para estar sozinho, mas que me quer do seu lado. Negligencio a minha companhia inicial, quero estar contigo. A tua força impele-me a te tocar. Danças agora sozinho, vejo que olham para ti. Sinto-me ameaçada. Desespero com a demora da bebida que não vem.

            XY

 

         Sinto o teu cheiro passar por mim. Diferente, agrada-me. Sinto a tua energia rondar-me, os teus aromas flutuarem pelo ar, misturando-se com um pouco de tudo que não é já teu. Sinto o teu toque. Quero estar sozinho, mas o teu toque traz consigo delicadeza e paz. Respondo-lhe, simplesmente por não o afastar. O teu corpo aproxima-se uns centímetros e sinto o teu calor. Tocas na minha mão, e permito que os meus dedos se entrelacem nos teus. A outra mão, invejosa, não desiste enquanto não toca na tua cinta, firme e sensual. A música, sem o fazer, baixa de tom, e puxo-te suavemente para mim. Aproximas os teus lábios dos meus, e dançamos ao nosso próximo ritmo, independentes de tudo o que se faz ouvir ao nosso redor. Afastas-te. Não sei voltas, mas quero que sim. Vim para estar sozinho, mas agora que te conheço, quero-te perto de mim.

            XX

 

         Vejo na bebida que aguento na mão nada mais que uma autorização para voltar para a tua beira. Gosto da maneira como me tocas, gosto da maneira como me sentes e olhas para mim, ainda que o teu olhar viva, para já, apenas na imaginação do meu. A fluidez dos teus movimentos altera-se ligeiramente quando me vês novamente, entramos novamente na nossa própria dança. Tento adiar os segundos em que te vou beijar, vivendo um pouco mais estes momentos em que te quero conquistar, em que não sei se serás meu.

            XY

 

         Quando voltas, o prazer que sinto revela-se estranho, quem sabe a falta de treino em ter alguém tão belo como tu nos meus braços. Com o tempo deixei de procurar contacto, e viver a minha VIDA isolado, longe de tentativas de sedução que caiam na frustração. Vejo-te como um presente do destino, face a minha prolongada ausência das estúpidas competições sexuais… Não estou nervoso, controlo os meus sentimentos, com a absoluta certeza que, a qualquer altura, nesta noite, vais deixar-me, envergonhada, e não te voltarei a ver. Aprendi a usar cada segundo de prazer e bem-estar como algo divino, que tenho agora e não sei quando voltarei a ter. Dás-me um pouco da tua bebida, e sinto o ácido cítrico da tua caipirinha prazeirosamente irritar as minhas papilas gustativas. Sinto os minúsculos cubos de açúcar dissolverem-se na minha boca, e espero um beijo teu.

            XX

 

         O tempo passa duma forma impossível de acompanhar. Deixo-me levar pela magia em que me envolves, e apenas por vezes tomo consciência do sítio onde estou, com quem vim, a que hora de ir. Pensando que quero que vás comigo, que não me quero despedir, percebo que não posso adiar por muito mais tempo o beijo que, triste, continua esperando nos cantos dos meus lábios. As tuas mãos, comandando os meus movimentos, apoiam-se nas minhas ancas. Subo-as um pouco, e toco, com as minhas no teu queixo. Os nossos lábios apaixonam-se por uns momentos, beijamo-nos, as línguas, tímidas, percorrem cada canto uma da outra. Gosto.

            XY

 

         Sinto o sabor da tua bebida na tua boca. Beijo-te, percebendo que não esqueci, nem esquecerei essa simples arte, passe o tempo que passar, e sinto as nossas bocas assumir o ritmo dos nossos corpos, dançando sem medo, entregando-se. Estranho a ligação estabelecida, penso nas poucas palavras ditas, penso se sentirás o mesmo. Penso se haverá algo de diferente neste duo, ou se estarei completamente enganado e tudo não passa de uma ilusão prestes a ser descortinada. Quando os nossos lábios se descolam, elevas-te um pouco e sussurras ao meu ouvido, pedindo para irmos embora, juntos. “Vem o momento” – penso, prestes a encarar a dura realidade. Aceno timidamente, dizendo que sim, que quero ir embora contigo. Dás-me a mão, quero imaginar que com medo de me perder, e saímos da pista, deixando a música mais longe. Paro. Estamos próximos da saída. Sinto a tensão na tua mão, ao não encontrar fluidez nos meus movimentos para te acompanhar. Viras-te para mim.

            – Há algo que não percebeste, talvez… e tenho de te dizer… – digo-te, não precisando já de aproximar os meus lábios dos teus ouvidos. Aproximas-te.

            – Que foi? – perguntas, intrigada.

            – Eu sou cego – respondo, com a frase que geralmente não preciso de dizer. A frase que as pessoas fazem por evitar ouvir, mantendo a distância, mantendo o frio. Fazes uma pausa e dou-te tempo para assimilar a surpresa e a desilusão. Sinto-te aproximar mais um pouco.

            – Eu sei. Vamos?

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