Desalinho [2009]Ficção

Jardim

            Porque é que a temperatura é sempre a mesma? E porque é que as nuvens estão sempre perto, e à volta do sol, mas nunca em cima dele? Devia ficar giro… devia ficar sombra, como quando estou debaixo duma árvore, mas em todo o lado! E porque é que a relva não cresce? Porque é que a cascata tem sempre o mesmo volume de água a cair? E de onde é que vem essa água, o que é que há do outro lado??

            E porque é que posso comer de tudo o que há, tudo, menos daquela árvore no meio? Não faz sentido! O Adão, de cada vez que lhe falo nisso passa-se. Acho que é das poucas vezes que o vejo sem aquele sorriso idiota nos lábios. Não me interpretem mal, eu gosto muito dele, trata-me muito bem, mas também não é que eu saiba como é não ser tratada bem. Mas ele… não sei, às vezes aborrece-me… Passa a VIDA a dar nomes aos animais, depois engana-se, começa tudo de novo, e anda ali dum lado para o outro, com a sua folhita de plátano, todo contente. E dar nomes aos animais… deve ser grande empresa. Quando eu quis chamar Catiára ao que ele acabou por chamar de Ornitorrinco, gozou comigo, e chamou ao assunto logo a hierarquia das costelas! Pois eu já me dei ao trabalho de as contar, e temos as mesmas! Quer dizer… ele dantes tinha número impar ou quê? E… Ornitottinco? Como se fosse um nome de inspiração divina. Bem, inspiração divina acaba por ser tudo aqui…

            E essa folha de plátano… não percebo. Acho que desde que nasci que me lembro de ter essa folha à frente do meu se… da minha cinta. Os meus braços, descobertos, os meus joelhos, descobertos… porque tenho de tapar algo cuja única função é fazer chichi? O pior é que não dá muito jeito. Se por algum acaso estou particularmente inspirada, acaba sempre por salpicar para a folha e depois tenho de andar umas horas com o grande aroma de urina. Uau.

Não sei… nem percebo como é que de repente me deu esta vontade de questionar tudo. Tudo ia bem, até que conheci alguém que me abriu os olhos! A cobra. Ao menos alguém que me tira da monotonia. Gosto dela, é sopinha de massa, e acho giro isso. Ultimamente tem-me falado da Macieira. Nem disse nada ao Adão, passava-se logo. Mas estou a pensar em experimentar.

Qual é o problema? É uma árvore como as outrasss? Ssse podess comer pêsssegoss, laranjasss,… aquela não há-de ser muito diferente, poisss não?

Pois realmente não há-de ser assim diferente.

            Combinei com a cobra perto da laranjeira. Só há uma, e chega. É curioso, tiramos uma, e nasce uma outra logo a seguir. Digo ao Adão que vou dar um passeio e lá vou ter. A cobrinha vai-me dando força, para não desistir. Aproximo-me, tiro uma, e dou uma dentada.

            Fico contente. Variedade, desalinho. A água deixa de cair da cascata, e as nuvens tapam o sol.

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