Textos

Há Dois Meses na Estrada

Há dois meses na estrada…

Já ando há semanas a dizer que ando no deserto. Mas, agora que descanso debaixo de uma acácia, com vista sobre outros camelos a protegerem-se do sol à minha esquerda em duas ou três árvores irmãs desta, agora que estou rodeado de majestosas dunas que se estendem por milhares de quilómetros, acho que, de certa forma, só agora é que aqui cheguei. E que chegada…

“É agora!” alguém grita, avistando o comboio ao fundo. Olho para a esquerda e vejo a locomotiva a aparecer, imponente, com as suas inúmeras carruagens e sonhos e ideias e promessas de algo novo. Ao fundo, miúdos que saíram de um autocarro e homens vestidos de azul com kalashnikovs a tiracolo preparam-se para entrar. O meu grupo de dez pessoas, provenientes de oito países diferentes, pega nas mochilas e a excitação é visível no olhar de cada um. E eu, sem ver o meu, sinto-o, de dentro para fora, de fora para dentro, de todo o lado para qualquer local, a explodir aos poucos. Que bom! Aquela estrica tão bem-vinda de quem se aventura por algo novo, de quem tem o simpático medo de que algo não corra
exactamente bem, de quem sabe que vai dançar com os Ventos daí a umas horas. O comboio desacelera e aparece o mesmo polícia que nos pedira os passaportes momentos antes, à nossa direita. “Já não vai dar…”, penso, meio desiludido, “Não nos vai deixar ir nos vagões”.

“Que é que ele está a dizer?” pergunto à Justine.

“Para não escolhermos um vagão muito afastado da locomotiva, para depois não ficarmos muito longe dos táxis à chegada.” Perfeito!

“Estás bem?” pergunto à MacKenzie, cujo irmão tinha, há muitos anos, morrido atropelado por um comboio, deixando uma cicatriz difícil de curar.

“Sim, estou…”

“Vamos?”

“Vamos” e dá um passo em frente, comigo à retaguarda, em direcção à carruagem mesmo à nossa frente. Vejo a australiana a agarrar-se com força ao escadote, perna direita na beira e salta para dentro. Eu sigo-a tão entusiasmado que quase lhe salto por cima. Mergulho com o meu coração a mil na carruagem vazia com uma fina camada de pó de ferro no chão, liberto-me da mochila, e apresso-me a debruçar-me sobre a beira para o pessoal me dar o que carrega. Entra um, dois, três, e estamos os dez. Paro um bocado no tempo e olho à minha volta. A carruagem é escura, seguem três mauritanos na da frente, outros lá do fundo e mais ninguém atrás. No país que acabámos de inaugurar para as próximas horas de viagem toda a gente sorri, à medida que nos começámos a mexer. Tiram-se fotos e dão-se abraços. Que fixe estar feliz e assim sentir as pessoas à nossa volta.

Arrancámos deserto adentro.

Passei a viagem, ora debruçado sobre a beira a ver o mundo passar, ora encostado à parede a trocar histórias com os meus amigos. “Vou contar-vos a história de quando eu…” dizia. “Vou contar-vos a história de quando eu…” ouvia dizer, à medida que o sol se ia pondo e, na sua vaidade, convidava algumas fotografias, pedido a que eu acedia de bom grado.

“Estou aqui” pensava. Estava ali, que cena… estava a entrar deserto adentro numa carruagem que pacificamente tomáramos de assalto. Não havia luzes e a das estrelas fazia-se sentir sem timidez.

Levanto-me, não consigo dormir. À minha volta todos os meus amigos dormem dentro dos seus sacos-cama.

Caminho até ao fundo e quedo-me mais uma vez, encostado à beira. A poeira, a única maleita desta viagem, já não me entra olhos adentro, e posso ver a paz que me rodeia sem sacrifício. “O sono não virá” penso, despreocupado.

Talvez precisasse de estar acordado. Talvez precisasse de mim todo ali, pois só assim não ficaria com a sensação de que não tinha retirado tudo daquilo. As horas e as paisagens daquela viagem não eram todas iguais. O deserto e o céu eram os mesmos, as pessoas à minha volta as mesmas. Mas, ainda assim, cada segundo multiplicava-se, não tanto em significado mas nos pensamentos que aquela vazia imensidão ao meu redor me oferecia. Pensava no tempo que tenho por estes Universos, e no tempo que já passou. Pensava em estar ali, e em como seria deixar de estar em lado algum. Mas, como sempre, quando em viagem, estes pensamentos eram aveludados. Não traziam consigo a massacrante e metálica realização da nossa mortalidade, mas a suave carícia de que a VIDA é o que se está a fazer naquele preciso momento. Não sei ao certo o que seria de mim sem as minhas viagens ou a ideia das mesmas… no fundo, não sei o que seria de mim sem a minha felicidade… Pois é quando estou em viagem ou quando sei que elas vão acontecer que consigo mais habilmente aprender a lidar com o não-existir. É paradoxal, até. Faria sentido que quanto mais felizes estivéssemos mais temêssemos a morte, mas passa-se o inverso comigo. Quando estou feliz, quando sou feliz, aprendo que devo-me mais do que ocupar os meus momentos presentes a mergulhar na frustração de não conseguir obter respostas para algumas das minhas questões. Claro que não quero nunca deixar de pensar nisto, pois está na fibra de quem sou. Deixar de questionar o que houve e haverá seria possível apenas por um novo e defeituoso eu. No entanto, quando estou em viagem, quando estou e sou feliz, tenho uma resposta. Não é para a mesma pergunta… mas não interessa, tenho uma resposta! Tenho uma resposta! E a resposta é agora mesmo, todos os dias! A resposta é que agora estou aqui, e agora a minha alma perde-se de alegrias debaixo das acácias e ao lado dos camelos, e agora é só isso que me interessa! Ah… estou bem!

15h33, 6ª, 4 de Abril de 2014
Deserto de Chinguetti

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