Desalinho [2009]Ficção

Gone Wrong

Banda Sonora

 

            Hoje tudo é muito diferente. Diferente do que alguma vez imaginei. Hoje, sentado na lareira do meu pequeno apartamento, arrendado por uma pechincha nos arredores de Ottawa, pensando no porquê de estar a celebrar os meus cinqüenta e seis anos tendo como companhia apenas uma garrafa de Moët & Chandon, descubro que hoje… tudo é diferente. Lembro-me do dia em que decidi ser como sou, fazer o que faço. Com saudades de Portugal, penso nas razões pelas quais tive de partir. Tinha tudo, tudo o que tanta gente sempre desejou, mas optei por abdicar de tudo. De quase tudo, os amigos permanecem. Ou será que sim?…

Estava prestes a casar, tinha amigos, tinha uma família que me amava. Tinha tudo, mas não me tinha a mim próprio. Tinha apenas uma imagem de mim que os outros desenhavam e me mostravam posteriormente. Eu, imaginando saber o que estava a fazer, apreciava a imagem, e concordava com ela. Todavia, certo dia, decidi ser eu próprio a fazer o desenho. Percebi que não podia permanecer no mesmo sítio de sempre, tinha de voar, abrir os braços e ir encontrar-me. Assim rompi o noivado, deixei em choque a minha família e a maior parte dos meus amigos.

            – Tenho de viajar… – dizia, sem ser compreendido.

            – Mas se tens tudo aqui! – diziam, para me fazer mudar de ideias. No entanto, ouvia cada argumento como estórias inventadas na hora, na vã tentativa de me impedir de abraçar o meu desalinho.

            Ela não entendeu, e chorou, como chorou. Chorei com ela, enquanto tentava fazê-la perceber, tentando convencê-la a partir comigo. Em vão. Tentei fazer-lhe ver que não podia permanecer no mesmo sítio de sempre, para sempre, fazendo sempre a mesma coisa, com a mesma profissão, por melhor que fosse.

            Assim parti. Em busca não sabia eu do quê, parti. Parti com a promessa de voltar passado um ano, mas só passado quatro o fiz. Recordo-me, na viagem de regresso, de imaginar que estabilizaria, que então tinha percebido o que realmente queria. Contudo, ao chegar, senti que, de certa forma, é impossível partir, e a única maneira de o fazer é estar constantemente em movimento. Ela… tinha casado. A família recebeu-me, pedindo para ficar. Disse que sim. Os amigos, esses, os que mantive, abraçaram-me, perguntando se ficaria. Ao dizer que sim, uns perceberam, outros não.

            Não passaram mais de duas semanas. Era demasiado opressora a felicidade que via em toda a gente em ter-me de volta. Apenas me pressionava, lembrando-me que não poderia nunca partir… o mais estúpido é que isso acorrentava-me, o desejo que tinham de que ficasse.

            Por isso fiz o que fiz. Naquela Segunda-Feira parti, novamente. Entre trabalhos em bares, em navios, armazéns, figurações em alguns filmes de porcaria, ia sobrevivendo, dum lado para o outro, sempre em busca de algo que, hoje sei, talvez nunca vá encontrar. Voltava a casa a cada cinco, seis anos, mas de cada vez sentia toda a gente cada vez mais longe, e os pedidos cessaram. Pelo que voltava a casa cada vez menos.

            Hoje, passado tanto tempo, acho que não pertenço a lado nenhum. Terei feito bem? Divirto-me, como me divirto, basta querer… mas em momentos como estes, e em qualquer momento em que esteja sozinho, o peso da solidão esmaga-me a espinha, recorda-me do vazio que há dentro de mim, e atira-me sem misericórdia para as recordações de tempos em que o que procurava… era nada, já lá estava. Nesses momentos é quando mais me questiono. Todavia, descem de plano quando vejo um pôr-do-sol em Havana, quando mergulho no Índico em Moçambique, quando passeio de camelo nas dunas do deserto marroquino. Qual o melhor? Qual a melhor opção? Teria sido possível conciliar tudo isto e ter percebido mais tarde que a única maneira de me encontrar fosse perceber que nunca me encontraria em pleno?

            Não sei, nem nunca vou saber. Sei sim que o facto de saber que nunca virei a saber é, em si, uma certeza. Não sei se a minha VIDA correu bem ou não, sei apenas que correu. Como correu…

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