Desalinho [2009]Ficção

Feitos Omnipotentes Geram Ovações (?)

            Foda-se! Nem uma sesta de meia hora se pode tirar! Este Agosto está dos piores de que me recordo… Levanto-me mal me chamam, o reboliço do costume. Aqueles minutos, meio a dormir, meio acordado, que podem fazer toda a diferença enquanto um gajo se arranja. Os colegas que tomavam café saem a correr também para preparar tudo. Em menos de dez minutos estamos no carro.

            – Foda-se, pá! Será que é do mesmo cabrão? – pergunta-me o Pereira.

         – De certeza! Cinco incêndios em três semanas, ali tudo na mesma área, se calhar achas que é coincidência, não?… – respondo. Vamos sentados no banco da frente, entre solavancos vamos falando da VIDA que temos tido nos últimos tempos… sempre daqui para ali, sempre com trabalho, e sempre aquela sensação inglória. Acaba um, mas é só um. A destruição está sempre apenas a um pensamento e pouco mais de um caralho qualquer… De certeza que é tudo merda de um filho da puta que tem um prazer mórbido qualquer em destruir. Nunca me tinha acontecido sentir o que tenho vindo a sentir, que caralho… Quando conseguimos apagar na totalidade um incêndio, coisa que tantas vezes se mostra quase impossível, em vez de me sentir com dever cumprido, estou já a pensar em quando começará o próximo. Começo a deixar de ter prazer nesta merda, prazer em ajudar… Porque se dantes vinha a esperança agora vem o medo. Se dantes vinha a esperança de que poderia ser o último durante algum tempo, agora vem o medo de estar outro já a começar.

            – Olha pá, – diz-me o Pereira – sempre vens Sábado? – pergunta, referindo-se ao baptizado do seu segundo filho.

            – Claro que sim! Agora vê lá se desta vez esperas mais que um ano para ter outro! É que isto de dar prendas de baptizado uma vez por ano não fica barato! – brinco, uma vez que era o segundo filho que o Pereira tinha tido num ano e pico.

            Quando chegamos, o cenário não é agradável. Os acessos são difíceis, e temos de agir rapidamente para que não alastre para as casas, que se encontram a dois quilómetros. Mais uma das alturas em que nos sentimos quase inúteis. Milhares de litros de água, um helicóptero, e o fogo parece que se alastra duma maneira demoníaca. Eis que estou a ver toda a água que inutilmente cai à minha frente e penso, para minha surpresa – “Que caralho… tanta gente a morrer à sede e nós aqui a gastar esta água toda por causa daquele filho da puta!”. Olha que caralho de pensamento! Isto não vai nada bem mesmo dentro desta cabeça. Foda-se como quero que aquele caralho morra!…

As horas passam e estou com o Pereira a tentar matar uma das frentes. O cansaço é evidente e o calor quase insuportável. Vemos alguns populares ao fundo a ver, a chorar com medo, outros a tentar ajudar de todas as maneiras que podem.

Aconteceu tudo muito rápido. Num momento vem uma rajada de Vento que faz com que o fogo mude subitamente de direcção. Estou um pouco à frente do grupo, e o Pereira uns dez metros à minha frente. Deixo de ver o grupo, e deixo de ver o Pereira. Estou rodeado de fogo, o calor, que já de Agosto não é agradável, torna-se insuportável. “Estou fodido!” – é a única coisa em que posso pensar. Ouço o grupo a chamar-me e a pedir-me para correr, fugir. Não tenho por onde. O fogo ganha terreno e sinto o calor queimar-me a pele. Apesar de ter uma profissão arriscada, nunca pensei morrer assim… Mas… penso que tenho de tentar sair, dê por onde der. Deixo de ouvir os gritos dos colegas, que me chamam para tentar ajudar, ouço apenas as labaredas fortes e massacrantes. Instintivamente viro a mangueira para cima, com uma trajectória cuidada para que a água incida sobre mim. Uma vez encharcado, largo a mangueira e saio a correr. Ao fundo vejo uma saída que me parece estar quase descoberta. Vou a correr, mas rapidamente o fogo a consome. “Não vou morrer assim” – continuo a correr, e furo essa saída. Não faço a mínima ideia onde estou, mas tento recordar-me da minha posição anterior e dirigir-me para perto da equipa. Vou correndo e, miraculosamente, consigo alcançar a mesma sem ter de furar mais chamas. O meu coração bate desenfreadamente, e o meu susto é tanto que não consigo sentir sequer o alívio de estar a salvo. O Pereira está ao fundo.

            – Foda-se, pá! Ia sendo desta!

         – O Pereira?? – perguntam-me. Estava de costas. Acho que a minha ânsia de encontrar o Pereira era tanta que me iludi completamente, confundindo-o. Procuro-o entre o resto do grupo. A cara de toda a gente é de interrogação, a minha suponho ser de desespero.

            Conseguimos extinguir o fogo no dia seguinte. Encontramos o Pereira passado umas horas, prostrado no chão, carbonizado. Estou em pé, ao lado do seu corpo, uma lágrima escorre-me de cada olho. Penso no porquê disto tudo. No porquê de alguém ter de morrer tentando fazer o bem, salvar o próximo. E penso especialmente no porquê de alguém gerar, propositadamente, este tipo de situações. Famílias que perdem as casas, tudo o que têm, pessoas que perdem as suas VIDAS… a troco de quê? A troco de quê? Penso, penso, e não consigo encontrar uma explicação racional para esta maldade genuína que habita algumas pessoas.

            O funeral, apesar de digno, assemelha-se ao extinguir dum incêndio destes. O Pereira, com uma mulher e dois filhos pequenos, perdeu a VIDA, e na semana seguinte, tudo estará igual. Os rituais não mudam, o cabrão por detrás disto concerteza não muda… foda-se, que muda?

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