Textos

Elogio ao Álcool

“Agora… é certo que tais substâncias têm os mais diversos efeitos nocivos sobre a população, sobre o mundo, sobre tudo aquilo que conhecemos, com as suas devidas excepções. Pensando nos prós e nos contras gerais, talvez eu decidisse, se tal decisão me fosse premiada, que o álcool nunca tivesse existido no mundo. Pois talvez os casos de violência doméstica, violência geral e más decisões sejam mais pesados que os bons resultados da embriaguez.”

Era essa a minha ideia ao começar a escrever. Estava a caminhar rua fora a caminho de casa da Ema, quando pensei no que se tinha passado comigo. E pensava que sim, que todo o mal que acontece por um, ou uma dezena de copos a mais, fosse mais potente que todo o bem que acontece no mundo com as mesmas doses.

Mas, sem retirar qualquer parte de importância aos murros que, infeliz e atrozmente ocorrem quando lançados no etanol, é preciso ver tudo o que demais acontece. E é certo que o filho de um casal que de tal maleita sofre possa discordar de mim com toda a força, e até considerar as minhas palavras uma qualquer moderna heresia. E eu não o culpo por isso, minimamente. Mas uma coisa é certa: como poderemos nós, alguma vez, saber com precisão se o álcool trouxe mais benefícios ou mais malefícios ao mundo?

Podemos basear-nos em estatísticas, que nos falam dos casos de dependência do copo, ou de, mais uma vez, de casos de violência doméstica e más decisões. Tudo isto é terrível, afirmo sem qualquer ironia. Mas, pensando bem… é certo que não fazem parte de qualquer estatística as amizades que se fizeram, os felizes filhos que nasceram ou as pinturas e textos e melodias e súbitas realizações que advieram de uma golada a mais. Nada disto está registado, tampouco poderia estar. Pelo que me forço a reduzir-me à minha própria experiência, ela mesmo tão incompleta e impotente quanto a lua em gravidade. Pois se há tanta evidência que escapa aos sentidos, que posso eu fazer senão outra coisa?

Assim, baseando-me nas minhas experiências das mais normais vezes, acabo por ter uma opinião que vai num sentido muito claro e distinto. Uma delas é a maneira como conhecemos as pessoas quando navegando em tal substância. Pode dizer-se, sem exagero, que já conheci e privei com milhares de pessoas. Posso eu dizer também sem qualquer exagero que sinto sempre, não obstante aquela rara excepção da pessoa que dança qualquer música sem qualquer tónico, que conheço melhor qualquer alma quando dançando ao ritmo de Dionísio. Cada bebedeira entre recém-amigos, falando com as palavras que o merecem, acabam por, na generalidade, valer uma ou duas semanas de conversas. Porque aí as capas descem todas, as roupas vão à rua e estamos todos, uns para os outros, como viemos ao mundo, como se o nascer fosse o início de um processo de inibição que apenas por vezes conseguimos derrotar. Agora, é certo que, por vezes, há cliques de almas que não precisam de mais nada senão um espaço comum, e tudo acontece sem demais incentivos. Mas há excepções para tudo, e não é delas que quero falar. Quero falar das pessoas que vejo com a bebedeira, esteja ela nos meus olhos, nos do meu amigo ou, se tudo correr bem, nos de ambos.

De copo na mão já falei com pessoas cujo nome sabia há anos mas que só os conheci naquele momento. Porque, naquele momento, talvez depois daquele gole, a tal capa caiu, e a pessoa perdeu a vergonha em ser quem era, e falámos sem medo da opinião que choveria. E que fantástico é presenciar isto! Para mim, muito mais fantástico do que o fazer, é ver pessoas fazê-lo. Sim, falo de vezes em que a coisa não anda demasiado rápida e não se acaba com um vómito num vaso, não… não defendo tudo. Note-se que defendo aquilo que fui vendo ao longo dos tempos… na minha limitada experiência enquanto presente neste planeta. Acabar uma noite dentro de um edifício em reconstrução, sentados num varandim a ver o sol nascer, depois de uma luta com extintores fora de validade encostados a um canto à espera de serem levados, conversando não acerca do que vai no coração mas do que aí habita, são circunstâncias que, a meu ver, não são nada senão enviadas pelo velho Dionísio. E isso, caros amigos, é belo. É belo o momento em que, de braço em cima do ombro de um velho amigo, lhe digo, pela primeira vez, que o amo sem ter medo que isso pareça estranho, é belo o momento em que alguém se abre completamente sem medo de ser julgado, e tão mais belo é que alguém o escute sem ter a vontade de o julgar. Tudo isto é belo, tudo isto é VIDA.

E, por mais certo que seja que seria espectacular que tudo acontecesse sem tais incentivos, a verdade é que, na minha experiência de um puto de trinta anos, tal não acontece com a frequência desejada. Pois estava eu naquele bar ali ao fundo a ver o Man U – Chelsea, bebendo a minha segunda cerveja, quando comecei a sentir, ao de leve, como um carteiro cansado, o bater suave de uma quantidade de álcool que, em tempos cambrinhos seria irrisória. O meu ser arrastava-se sem desprazer, mas sem agrado, pelas ruas, neste país há quase dois meses, à espera não sabia ele do quê exactamente, navegando nas, por vezes doces, por vezes amargas estradas do não-saber. Mas, quando as cervejas chegaram a mim, dei pelos meus olhos a ver à volta. Ao meu redor só africanos, como sempre há quase um ano. O quente do termómetro já morava dentro de mim, como há quase um ano. Mas… as Star que bebera davamme um novo prisma. De repente, os africanos que me rodeavam não eram meros habitantes de algures que eu calhara de visitar e tornaram-se nos habitantes de um sítio exótico e distante que eu tinha a sorte de estar a conhecer. De repente, o calor que sentia encostava-se à minha alma e dizia-me que Portugal estava muito longe. Olhava para a estrada e reparava como não via as coisas com claridade. Havia uma certa névoa bege sobre tudo e, de onde eu estava, com tal névoa via as keke passarem, as miúdas com cestos à cabeça e outros a olharem com cuidado para cada lado da estrada. De repente, tudo era real. De repente, e por mais névoa bege que o pouco-álcool me tivesse oferecido, não havia mais névoa. Senti que a pior névoa, para mim, pode ser a névoa da constante sobriedade, em que os dias se misturam uns nos outros, em que cada acção não passa de uma sub-acção de outra qualquer, em que a VIDA não tem momentos únicos mas que é, em si, uma sucessão de momentos expectáveis e normais. Naquela rua sem luz passei por uma data de gente na rua, todos virados para uma garagem aberta onde cristãos e muçulmanos dançavam ao ritmo de uma música qualquer. Parei e espreitei, quedado na rua sem grande propósito. E, naquele momento, tudo o que estava a acontecer era tão eterno quanto efémero, tão memorável como nunca existido.

Vim para casa e quis escrever.

20h10, d, 26 de Outubro de 2014
Lagos, Nigéria

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