Desalinho [2009]Ficção

Ella

Quando vi Ella à minha frente, fui instantaneamente transportado no tempo. Já não era eu, o eu dos últimos tempos, o eu em que sempre me receei tornar e que tomou conta de mim. Já não era o eu que trabalha doze horas por dia, que se aborrece todos os dias, que vive aborrecido, que castiga os outros pela suas frustrações. Que merda… no que me tornei. Incrível os milhares de quilómetros que sinto em relação ao que fui, ao que quis ser, ou continuar a ser, e no que me tornei… Penso no meu próprio pensamento, e dou-me esperanças, pensando que o facto de questionar e de ter esta noção possa ser um presságio de que ainda é possível voltar atrás. Iludo-me conscientemente, sendo que sei que é impossível. Se comecei por ver os meus deveres como meras responsabilidades a que não deveria falhar, agora vejo essas responsabilidades como uma terrível sina e castigo, de quem deixou o trabalho, o mundo, tomar conta de si… Sou apenas mais uma formiga nesta indústria que é a sociedade…

Levanto-me da cama, enquanto penso no pedido de Ella, que me deixou estarrecido, e sento-me na secretária. Fim-de-semana, batalho contra a vontade de adiantar trabalho para a semana. É Sábado, foda-se! Recordando-me da existência cheia de VIDA que já tive, da pessoa que já fui e que a visão de Ella infiltrou na minha memória, abro uma gaveta. Retiro alguns dos meus escritos e percebo, tristemente, que a última vez que escrevi foi há anos… Retiro alguns dos mesmos e com dor leio os meus sonhos, as minhas perspectivas, que julgava eternas e deixei perecer com o Vento… Que merda… Penso que os deveria queimar… se por um lado servem para me recordar que já fui feliz, por outro lembram-me que já não o sou… Como é possível darmos tantos passos errados fazendo o que achamos estar certo? Penso no pedido de Ella… Penso em Ella…

            A primeira vez que a vi, não a vi. Era apenas mais uma cara entre tantas outras, num mundo de rostos novos, aglomerados no meio dum ano completamente diferente que se avizinhava. Pisara o solo australiano pela primeira vez faziam duas semanas, quando realmente a vi. Pisara o solo australiano pela última vez, da última vez que a vi. De volta a casa, trazia comigo o melhor ano da minha VIDA, e a dor duma paixão, dum amor que conheci, que vivi, e que não mais poderia viver.

            – Não percebo o que se está a passar, nem o que vai dentro de mim… vim para aqui à procura de tudo menos do que estou a sentir… – disse-lhe, daquela vez. Estávamos deitados na sua cama, depois de uma noite de sexo e horas de conversa – Mas… se estivermos conscientes da realidade… se percebermos que não vamos conseguir fazer durar a nossa relação comigo a viver na Noruega e contigo a viver na Croácia… se percebermos que tudo o que temos é o agora, acho que vamos viver cada segundo como se fosse o último, vamos amar como nunca mais… – as palavras custavam-me a sair, pois queria contrariar o idílio de pensar que poderia durar para sempre. Na ânsia de sentir tudo duma vez, pensava ter descoberto a solução para ter tudo de si e dar tudo de mim… Hoje em dia raramente sinto, quase sentindo que esgotei os sentimentos a que tinha direito com aquela relação, com a minha juventude fugaz e apaixonada.

            Uma estúpida desculpa para justificar a ausência de vulcões cá dentro. Contrariamente ao que pensava, ao que tantas vezes escrevi, descobri que é melhor não sentir, é melhor não pensar, que o fazer e questionar toda a nossa VIDA, sentirmo-nos uma merda e uma desilusão para connosco próprios. Eu devia-me muito mais que isto. Mas sinto-me sem forças para mudar. Sou forçado a olhar o futuro de frente, e não o consigo distinguir do presente. Se dantes vivia para o momento, não vivendo cada dia como se fosse o último (ninguém o faz), mas sentindo-o como se fosse, agora tudo é muito disperso e confuso. As linhas desalinhadas que regem a minha VIDA estão sempre no amanhã, na semana seguinte, no mês seguinte…

            Mas ver Ella… Falar com Ella. Sinto a minha existência posta a nu, sinto tempestades de questões dentro de mim, sinto a necessidade perdida de me olhar no espelho e procurar, no meu olhar, quem sou. Apesar de serem tímidas imagens do que já fui, assustam-me, face a consciência de que me é impossível conciliar o que tenho com aquilo que na altura queria ser. Sou tudo menos livre, e faço tudo menos escolher o que mais me fará feliz. E, mais uma vez admito e me revolto… como é possível, se pensava estar a fazer o que era certo? No momento em que deixei de querer a minha felicidade no hoje, para estudar e garantir a felicidade do amanhã perdi tudo. Perdi tudo porque quando esse amanhã chega, não consigo nem posso apreciar a felicidade para que trabalhei, pois estou demasiado ocupado a pensar e a trabalhar na felicidade de um novo… amanhã. Assim, sinto cada amanhã como um tiro que não mata, mas que adormece a minha VIDA, deixando-a numa interminável lista de espera…

            Ainda não consegui assimilar este impacto que Ella teve em mim, tampouco o seu pedido. Combinamos encontrar-nos amanhã, e sinto um pânico terrível de a ver. Sinto um pânico terrível de ver a maneira como me vai ver. Ela foi o amor da minha VIDA, e sei que fui o dela. A última coisa que quero é ver a imagem intocável que tem de mim abalada, destruída. Acho que talvez Ella para mim seja, não só a pessoa que é e por quem daria tudo, mas também a prova que eu existi, que eu fui o que fui, que não sou louco… que é verdade a imagem que tenho de mim, que guardo com saudade, num infeliz cemitério qualquer onde as promessas vão morrer…

            – Olá Halvaard… – ouvi, ontem, ao sair do trabalho. A imagem que tinha diante de mim era nítida, um sonho a acontecer. Ao me aperceber de que era a VIDA a acontecer, e não uma qualquer alucinação, consegui apenas balbuciar o seu nome. Permanecia bonita, muito bonita, sobressaindo entre qualquer mulher em quem eu sequer tenha pousado a vista nos últimos tempos. Porém, algum do seu brilho parecia perdido, gasto. Ver o brilho da minha VIDA sem o seu próprio brilho foi um pouco assustador, na medida em que me senti, em parte, responsável… Disse-me que tinha tido de vir a Oslo para uma reunião e se lembrara de mim. Faziam doze anos desde que a vira pela última vez. Sugeri um café no MIR, para falarmos, pormos as coisas em dia, não sei…

            A caminhada foi desagradável. Acho que tínhamos tanto para dizer um ao outro que as palavras se atropelavam, criando um magistral engarrafamento, e impedindo a comunicação de existir. Não foi até uma boa meia hora depois que este engarrafamento se diluiu, e nos demos um pouco a oportunidade de sermos nós próprios, de falarmos. Dei por mim num triste acto… Ouvia-me falar, e gostaria de me ouvir… fosse o que dizia verdade… Não mentia acerca do meu trabalho, dos meus hobbies, na verdade não mentia acerca de nada. Dizia a verdade, mas fazia-o duma maneira completamente enganadora, espalhando energia e felicidade, espalhando aquilo que queria ter, muito mais do que aquilo que tinha. As horas passaram, e com elas o meu coração lembrou-se que, algures no tempo, tinha já batido, e com esse bater veio o martelar na minha cabeça, mais uma vez, relembrando-me daquilo em que me tornei. Mantive o meu acto, mas muito mais custosamente, já com plena consciência do que se estava a passar, do actor que Ella tinha diante de si…

            – Sabes… tinhas toda a razão quando disseste, daquela vez, que deveríamos viver o nosso amor o mais intensamente possível… – disse-me, sem me olhar. O seu ar sugeria-me que apareceria, a qualquer momento, a verdadeira razão pela qual estava em Oslo. Em três segundos imaginei-a a dizer que se queria mudar para aqui e viver comigo – E… bem, não sei se… bem, deves saber, mas foste o amor da minha VIDA – dessa feita olhou para mim a custo, e perturbou-me. Perturbou-me olhar para mim e não ver o mesmo eu, da mesma maneira que me perturba a mim próprio o fazer – Tive alguns relacionamentos, um ou dois até duraram mais de um ano… Mas havia sempre algo que corria mal, algo que… não sei, por mais feliz que estivesse… podia estar sem pensar em ti meses, mas uma vez que o fazia… era como que se entrasse numa guerra contra o meu próprio relacionamento… e quando dava por mim estava a sabotar uma relação que, na verdade, me estava a fazer feliz… – as suas palavras traziam consigo um misto de dor e arrependimento. Sentia-me ameaçado face a possibilidade do arrependimento se poder prender com o facto de nos termos conhecido – E… bem… e já desisti de lutar. Tive o que tive, tivemos o que tivemos, e foi bom, foi lindo, mas foi o que foi… – fez uma longa pausa – É por isso que… bem, já deves ter percebido que eu não vim aqui porque tinha uma reunião…

         – Já…

         – É por isso que… vim aqui para te pedir uma coisa… – estava completamente às cegas. Não quanto ao seu pedido, pois sabia que queria vir para Oslo, mas quanto à minha resposta – E quero que tentes perceber, por favor… mesmo que o que queiras dizer seja “não”, dá a ti mesmo uns minutos. Não penses que é fácil para mim… Bem, como te disse, já percebi que não vou ter mais nenhum outro amor, e estou com trinta e cinco anos e… Halvaard, eu queria ter um filho teu… – os seus olhos, perfuradores e húmidos, atravessaram-me a direito, deixando-se sem saber respirar. Queria ter um filho meu? Mas… – Por favor, não digas já que não… Podemos fazê-lo da maneira que quiseres, e não tens responsabilidades nenhumas, eu juro-te. Eu volto para a Croácia e nunca mais me vês… mas entende-me, por favor…

            Hoje, passado quase um dia, o pedido, estranhamente, faz-me sentido. Ou algum sentido. Não percebo como tal pode acontecer… penso que concerteza seja a única coisa a pensar quando se passaram as últimas vinte e quatro horas com a mente no mesmo sítio. Talvez seja a minha maneira de dizer: Eu desisto. Massacro-me com a vontade de a querer feliz, e com a evidente injustiça desse pedido, não sequer contemplando que nos reunamos. E… por outro lado, quem sou eu para questionar isto?… Eu que, desde o primeiro momento, carimbei o fim da nossa relação, quando esta aprendia ainda a o ser… Não sei que lhe dizer. Na altura quis chamar-lhe nomes, perguntar se estava doida, mas, para meu agrado, algo que conservei com o passar dos anos, foi o intenso carinho por si, e a incapacidade de a magoar…

            Combinamos encontrar-nos novamente no MIR. Quero dizer que sim, mas quero, ao mesmo tempo, dizer-lhe que não tem de ter um filho meu, mas podemos, ambos, ter um filho juntos. A perspectiva disso poder acontecer assusta-me. Assusta-me a gigantesca mudança que teria na minha VIDA sem ritmo nem cor. Assusta-me a ideia de poder descobrir que afinal não somos feitos um para o outro. Penso na infeliz estabilidade que tenho em eternizá-la na e minha mente como o futuro que poderia ter sido, e penso no risco da instabilidade em poder perceber que não o é. Penso em tudo, em tudo o que me aproxima e distancia de si, e numa eventual tentativa de ser quem já fui, sou romântico, e penso que talvez nunca seja tarde demais…

            – Olá… – o seu sorriso é triste. Creio que adivinha uma resposta negativa. Sento-me a seu lado e não devolvo o seu cumprimento. Estabeleço uma ponte sem qualquer interferência entre o que vai dentro de mim e os meus lábios, e ouço-me.

            – O que há a criticar, ou apontar, ou seja o que for que o teu pedido tem de estranho… tu sabe-lo, por isso não o vou dizer. Não vou dizer nada senão pedir-te que tenhamos, então, uns momentos como os que tivemos, e que… e que nos vamos embora. Agora. Para minha casa. Agora – a avalanche que desaba sob os meus sentidos, sob o meu ser é de tal intensidade que quase não me consigo levantar. Ela olha para mim surpreendida, sorri abertamente. Eu levanto-me, finalmente. Vejo-a fazer o mesmo, e temos um metro entre nós, até que, impelidos por uma energia já desconhecida, colamo-nos instantaneamente. Os nossos lábios cumprimentam-se num beijo agressivamente saudoso, mas infinitamente merecido.

            Se o caminho para o café, no dia anterior, foi desagradável por não saber o que se estava a passar, nem como reagir a isso, hoje, o caminho do café é desagradável apenas por saber exactamente o que se está a passar, e saber a vontade incrível de roubar a mim mesmo uns minutos da minha VIDA e estar já em minha casa com Ella, e quem sabe com um futuro diferente.

            Sinto cada toque na sua pele como pequenos momentos de eterno êxtase. A violenta energia de anos acumulados de distância dissipa-se lentamente, e uma vez em completa harmonia e contacto, deixamos o amor que sentímos um pelo outro fluir com mais calma, com mais de cada um de nós em cada segundo, agarrando os pedaços de tempo perdidos por uma má decisão ou um erro de julgamento…

O seu cabelo dispersa-se na minha almofada, estou por cima. Aguento-me já a custo, até que vejo os seus olhos fecharem-se e um leve e sensual gemido soar algures no quarto, sendo para mim a mensagem de que poderia acontecer.

            Tendo ambos recordado com exactidão os imensos momentos vividos doze anos antes, desabo ao seu lado e sinto algo estranho dentro de mim. Aquele sentimento que eu julgava perdido. Sinto-me feliz. Por uma vez tenho ao meu lado na cama alguém de quem realmente gosto, alguém por quem daria a minha VIDA… E connosco, um grande ponto de interrogação que me deixa a querer que simplesmente não parta, que Ella não parta.

            – Sabes…

         – Diz… – pede, girando um pouco, ficando de lado na cama.

            – Este filho… não tem de ser só teu… Podes ficar aqui, comigo… – o seu olhar assume uma expressão estranha. Curiosamente, sou capaz de jurar que é a mesma expressão que me lançou quando, há muito tempo, lhe disse que não tínhamos futuro… – Que foi? – pergunto, sentindo o perdido sentimento voltar ao seu estado normal… Não diz nada. Não consegue dizer nada – Ouve… tu própria o disseste! Eu fui o amor da tua VIDA! E tu és o meu! Não temos de cometer os mesmos erros! Não temos, tu agora estás aqui! A única coisa que tens a fazer é deixar-te estar, Ella! – digo, tentando não deixar as minhas palavras levar consigo o desespero que sinto. Tive, deixei de ter, pensei que poderia voltar a ter, estava errado…

            – Halvaard… não… não posso simplesmente deixar tudo para trás – aguenta o choro – Não sei… Pelo menos não agora. Tenho o trabalho, tenho… – levanto-me da cama e deixo de a ouvir. Talvez queira que eu insista, mas não consigo fazê-lo. É demasiada dolorosa a imagem que tenho de si, como um espelho perdido de mim. Ambos desistimos de ser felizes. Talvez eu esperasse que me resgatasse do que me tornei, imaginando que ela permanecera com o brilho com que a conheci. Mas… da mesma forma, talvez seja impossível qualquer um de nós resgatar o outro se estamos ambos no fundo. Estamos ambos perdidos, e tudo porque um dia eu me permiti a perdê-la, e permiti que ela me perdesse…

            Estou sentado no sofá na sala. A uns metros de distância, Ella veste-se, e prepara-se para me deixar novamente, desta vez, sinto-o, para sempre. Um vazio agoniante faz-se sentir dentro de mim, juntamente com a ameaça que não desaparecerá.

            – Quando eu não tinha nada que deixar para trás… deixaria tudo por ti, por mais que tivesse… – diz, perto da porta. Vejo, pelo canto do olho que espera uma despedida, que espera algo. Não sei o que mais tenho, neste momento, para dar, senão um silencioso adeus…

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