Lá passava ela, caminhando, angelical e demoníaca. O primeiro adjectivo no seu ar, o segundo no que nos fazia pensar. Contrariados, pensávamos o que não queríamos pensar, mas gostávamos e nada fazíamos para deixar de o fazer. Com os horários da dama na nossa cabeça lá sabíamos onde e quando ia passar, e juntamente com os velhos que fumavam cachimbo e conversavam no jardim, regozijávamos com tal vista.
Nunca ouvi uma palavra da sua boca, a sua comunicação era reservada para o carteiro, que recebia um “Bom dia” (sorte a dele), para os senhores da mercearia, que recebiam um “Olá” e pouco ou nada mais. Toda a vila a admirava, ninguém na vila o admitia. Fui crescendo com tal imagem na minha cabeça, permanecendo ela imutável.
Quis o destino mandar-me para longe, com uma bolsa para estudar em França, Paris. Deixei a vila, deixei Portugal, deixei tudo. Meus pais saíram também da vila e morreram uns anos mais tarde. Acabados os estudos voltei a Portugal, fixei-me na cidade e comecei a escrever.
Contudo, a imagem dela continuava presente, sempre. Não como mulher que poderia ter sido “a” minha mulher, já que as diferenças de idade eram grandes, mas como a mulher mais feminina e bela que conhecera. Quem sabe terá lido sem saber alguns dos inúmeros poemas que dedicara à minha musa inspiradora intocável. As palavras voam para longe, teriam chegado até ela?
Numa visão demasiado romântica, imaginava-a nesse momento, sentada em frente à lareira, a ler qualquer romance ou poesia, ainda solteira, esperando o príncipe encantado, que sabia no seu íntimo, nunca viria…