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Contos de Um Viajante – A Praia

I

Encontrávamo-nos sempre no mesmo sítio, mais metro menos metro… Eu chegava, o mar ainda em maré baixa saudava-me com ondas caprichosas. Chegava, tirava a blusa de linho branco, as calças da mesma cor e deitava-me na areia fina, sem toalha. Para quê? Se vou entrar no mar passado pouco tempo, e se ao me ir embora posso dar um mergulho para tirar os grãos que se apaixonaram pela minha pele, porquê deixar de sentir o suave e gentil lençol oferecido por uma praia indonésia, em Sumba Island.

E assim me deitava, de barriga para baixo, brincando com meus dedos entre os finos grãos, o pó mágico que me fazia sentir totalmen­te em casa, na praia… Não era passado muito tempo que ela chegava. Uma parte de mim esperava que ela deixasse de vir, a minha parte racional, já que ela era a razão pela qual eu andava tão atrasado na minha escrita.

Com os editores sempre à perna, sabia que aquela VIDA de so­nho não poderia ser posta em jogo. Contudo, ao vê-la ali, de pareo branco, colar de flores a molhar os pés na água morna, esquecia-me de tudo.

Até colar de flores! Pensava que era só nos filmes, ou nos livros que isso existia, contudo, na minha realidade, ela tinha mesmo um, que a coroava de rainha com todo aquele aspecto sublime, como se tivesse sido enviada e criada para mim, para ser a minha musa… Contudo, o que mais me atraía nela era todo o mistério que a en­volvia… Todos os dias chegava ali, molhava os pés na água, nunca entrava. Passado um ou dois minutos virava costas e ia sentar-se uns metros antes, onde a água não chegava. Ali se quedava entre uma a duas horas, a olhar o mar. Ninguém vinha ter com ela, não lia, não fazia nada, ficava simplesmente a olhar o mar, calmo, sereno, como ela aparentava ser.

E eu, ali sentado não muito longe, esperava que ela já tivesse algu­ma vez reparado em mim, que soubesse que eu existia. Queria falar com ela, mas eu não falava indonésio, e ela não sei se falaria inglês. Bem, na verdade, esta era a desculpa que eu dava a mim mesmo. O que acontecia era que não queria que nada abalasse aquela imagem que eu tinha dela, tudo era demasiado perfeito, e por isso muito fácil de esmorecer, de ser desiludido.

“Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, se quisés­semos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro, Ouvindo correr o rio e vendo-o.”

E eu que sempre tentei levar a minha VIDA com uma ideologia o mais contrária possível à de Ricardo Reis, agora via-me assim, preso a mim próprio, agarrado à ideia do que poderia ser, do que realmen­te saber. Se já estamos alto, para quê subir mais alto, mais alta será a queda… Mas que merda, detesto pensar assim, mas gosto de permi­tir-me ser diferente de mim mesmo, descobrir em mim, vez por vez, acções que não teria.

II

Um dia, ela atrasou-se… Passou meia hora, um hora, duas horas, e comecei a perceber que aquele atraso não era um atraso… Ela não viria. Triste, voltei para casa, e sem perceber a minha própria atitude, fechei-me no quarto, deitado na cama a olhar para o tecto. Durante algum tempo não conseguia perceber o porquê desta minha frustra­ção, já que nem a conhecia, mas foi quando adormeci e sonhei que tinha estado com ela que percebi… A razão pela qual eu não percebia porque estava triste (porque não a conhecia) era exactamente a razão da tristeza em si (porque não a conhecia). Complicado, não?

Dias passavam, e ela não aparecera nunca mais na praia. Porém, um dia pensei no velho ditado, se não vai Maomé à montanha… E assim resolvi seguir-lhe os passos, ir por onde achava que ela vinha. A areia foi desaparecendo, e com ela a vegetação, e com esta começou a aparecer um chão de terra batida com milhares de casas de chapa no horizonte, numa espécie de favela indonésia. O que chegava aos meus ouvidos era o choro de algumas crianças, pessoas a discutir naquela língua que eu desconhecia, e as pessoas que via estavam cá fora, algumas sem fazer nada, outras paradas a olhar para mim e um homem a gritar e esbofetear uma senhora pouco mais velha que eu. Aquele sítio não estava no caminho de nada, a minha musa perten­cia ali…

Até isto me tiram… O destino quis que eu nascesse aqui, que aqui vivesse e aparentemente, que aqui morresse… Toda a VIDA subser­viente, casada aos 18 e filhos aos 19. Do acordar até dormir, servir… E aquela hora que sempre adorei, que sempre me fez continuar esta VIDA sem enlouquecer, querem-ma tirar. Todos os dias, gostava de ir para o mar, apenas para o contemplar. Por momentos a minha mente voa, e já não sou isto, já não sou miserável, sou alguém em qualquer outro ponto do mundo, sou alguém feliz, ou melhor, sou alguém… Foi também o Adeus ao estrangeiro e suas promessas não ditas, que tenta disfarçar, disfarçando o seu olhar sobre mim…

“Quero saber sempre onde estás, não vais lá mais!” –Porque é que tenho de aceder?… Ele vem aí, com discrição escondo o caderno onde desabafo e limpo as lágrimas, tempo de teatro…

Não sei que pensar, mas fico desiludido. Não por ser pobre e vir dali, isso não me interessava nada, mas pelas consequências disso… Seguramente não era feliz, não ali, e isso, para minha própria surpre­sa, era o que mais me interessava…

Não sabia que fazer…

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