Textos

Consigo?

Hoje foi um dia intenso, daqueles que se sente cá dentro. Visto de fora, como se um filme fosse, não parecia haver nada de especial. Mas é por detrás dos olhos que tudo se passa.

A viagem começou tranquilamente, e parei logo ao quilómetro vinte cerca de uma hora, para ir ver a praia de Legzira, com as suas interessantes formações rochosas em arco. Daí passei por Sidi Ifni e foi ao sair desta cidade que começou o penar. A estrada levou-me para cima, fez-me atravessar alguns montes e presenteou-me com belas vistas. Mas dava por mim em subidas de quase uma hora para fazer seis ou sete quilómetros, depois descia a sessenta ou setenta à hora um chisco, andava uns metros em plano, e lá voltava a subir. Ao início iase fazendo mais ou menos bem. Mas começava a ficar cansado. Acho que, sem querer, estabeleci a regra de não fazer menos de oitenta quilómetros por dia a menos que o destino seja mais perto do que isso. Passava o quilómetro sessenta, a trinta e cinco de Guelmim, o meu destino. Tinha planeado mal as coisas… não tinha comida, por isso ia ter mesmo de ir até lá, por muito que me custasse.

Ainda não estava no quilómetro sessenta quando comecei, mais uma vez, a questionar a minha capacidade. Tenho de me transportar para aquele momento, pois agora, aqui na cama, tudo parece muito mais fácil. Mas, a verdade é que naqueles momentos em que tenho mesmo que dar o melhor de mim, é quando não sei se tenho estofo para isto. Sempre me considerei forte mentalmente. Acho que tenho um bom controlo da minha mente e das minhas capacidades, e tanto uma quanto as outras já foram postas à prova algumas vezes e tudo correu bem. Mas a verdade é que não sei se consigo ir até lá abaixo sempre de bicicleta. Que cena estranha! Se, por um lado, digo que tenho controlo da mente, por outro tenho de dizer que ela anda um pouco por todo o lado, ao desgoverno. É que, ao escrever a frase anterior, tentava transportar-me para aqueles momentos em que realmente sentia a dor e o sofrimento e questionava o meu sucesso. Mas dei por mim agora a não acreditar no que eu próprio escrevia. Porque agora, neste preciso momento, acho que sim, que sou capaz! Que, se depender de mim, consigo! Pouco a pouco, consigo. Ah, não me entendo…

Enquanto penava para subir tudo aquilo, pensava que este é um tipo de viagem que não tem nada a ver com a viagem da boleia. É cedo para dizer se gosto mais ou menos, e acho que nunca o vou saber por ser tão diferente. Há mais tranquilidade e eficácia de deslocação à boleia. Já estaria no Senegal! Mas de bicicleta sentimos os quilómetros que passam a sair-nos do coração. É bom saber que saí de minha casa, em Vale de Cambra e que, tirando o barco em Algeciras, vim sempre, sempre até aqui com o meu próprio esforço. É gratificante. Além disso também sentimos um pouco mais de bicicleta. Um pouco mais de tudo por onde passamos. Passamos nas vilas e temos tempo para reparar nos detalhes e cumprimentar os milhares de pessoas que nos cumprimentam. Uma desvantagem é a bicicleta propriamente dita. Temos de estar sempre de olho nela, o que é uma seca. À boleia, só com a mochila há uma certa liberdade de que sinto falta.

Tenho de ponderar, e perceber se chego a um ponto em que estou a continuar de bicicleta só porque disse que o faria. Se o fizer, é uma fortaleza mental que acaba por ser uma fraqueza… Pois a mais ténue das linhas é aquela que separa a resiliência, espírito de sacrifício e vontade do puro orgulho. Porque se chegar a um ponto em que realmente me desagrada a ideia de pedalar, tenho de sentar-me à mesa comigo mesmo, e dizer-me que não tenho de fazer nada de nada. Não há nada pior que ser refém de nós próprios, e eu tenho tantas certezas e tanta desinibição com certas afirmações que corro o risco de me aprisionar, por vezes.

Esta minha atitude de agora mesmo, em que já acho que vou conseguir, contrastando com aquela de quando subia aquelas montanhas, começou ao quilómetro setenta e um desta viagem. Sei, porque foi aí que cheguei ao topo e vi diante de mim uma descida enorme. Desde aí até chegar ao quilómetro noventa e seis, devo ter vindo a uma média de vinte e tal, comparando com a média de quinze até então. Dá um certo gozo apanhar um terreno porreiro e dar-lhe. O que não dá tanto gozo é olharmos para o pneu de trás e vê-lo a chorar. Parei a escassos quilómetros de Guelmim, enchi-o, enganando-me a mim próprio, e segui. Quando cheguei, jantei por dois euros, e foi peixe! Pela primeira vez desde que saí de Vale de Cambra, peixe! Paguei, parei num café para um chá e quando ia pegar na bicicleta… vazio. Ah, pá! Pensei em enchê-lo outra vez, só para que desse para sair da cidade e acampar num sítio qualquer. E amanhã resolvia. Mas não dava.

Uns rapazes, vendo-me no meu esforço, ofereceram-se para ajudar, e indicaramme uma loja de bicicletas. Já era de noite e estava numa cidade, por isso podia adiar mais dois mil quilómetros a minha estreia na mudança de câmara-de-ar. O homem lá o mudou e vim procurar um hotel, onde agora me encontro. O primeiro era cinco euros, bazei. Estou agora a pagar três euros por um quarto, num hotel que é quase tão mau quanto um onde fiquei na Síria aqui há uns anos. Mas… ‘tá-se bem.

22h21, 3ª, 11 de Março de 2014
Hotel Merdoso, Guelmim

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