Desalinho [2009]Ficção

Como o Mundo Avançou

um

A

Foi num Domingo. Era de manhã, creio que por volta das dez e qualquer coisa… Tinha acordado fazia pouco tempo, e punha café a fazer. Tomaria banho de seguida. Estávamos em Maio e a temperatura estava agradável. Ouvia Getaway Car… O telefone tocou algures enquanto eu caminhava da cozinha para a sala.

B

 

Ele acordou!! – gritei, com um sorriso viajante e um tom que, apesar de muito elevado, nunca seria exagerado. Dava a notícia à única pessoa no mundo que eu sabia que ficaria tão contente quanto eu com a boa nova, e isso unia-nos eternamente, apesar do tempo passado.

C

 

Quanto tempo… estive… em coma? – perguntei – Onde está a A.? – tudo o que me passava pela cabeça relacionava-se com estas duas questões. Quanto tempo estivera fora? Dois meses, seis meses, um ano?? Fizera A. perder muito tempo da sua VIDA, esperando por mim? Esperara por mim? Lembro como me custava algo tão simples como falar, algo tão simples como pensar. Sentia-me terrivelmente cansado, sentia-me terrivelmente ansioso, sentia-me, acima de tudo, destreinado de sentir. Quando tempo estivera fora?

D

 

Quando A. me ligou, não pude acreditar. Não pude acreditar como, ao ouvi-la pronunciar aquelas duas palavras, tanto entrei em contacto com a minha natureza animal. Como podia ser possível que eu tenha ficado triste ou desiludido pelo meu amigo ter acordado de um coma? Acho que chorei, e ninguém estranhou, pensando que as lágrimas que viam correr eram de alegria, quando representavam nada mais que um misto de desilusão comigo mesmo, traição ao meu melhor amigo, e o constatar de que nunca poderia ter A. para mim, que o tempo que esperara por ele fizera sentido… que o tempo que eu esperara por ela nenhum fez…

dois

 

A

 

Quando treinamos tanto tempo sentimentos e reacções, encontramo-nos completamente sem saber como agir quando surpreendidos pelo esperado. O choque foi tal que me recordo de tantos pormenores do que fazia antes, mas não faço ideia do que respondi a B… O momento de que me recordo presenteia-me a imagem de um espelho choroso, de uma pessoa a chorar compulsivamente. Sentia que podia finalmente libertar duma vez toda a mágoa e tristeza acumulada. Não precisava já de disfarçar que acreditava que acordaria, de vestir sorrisos, de me dar falsas esperanças. O meu amor tinha acordado… não me senti mal por ter tantas vezes duvidado se alguma vez o faria. Não me senti mal pois isso nunca me impediu de o visitar quase todos os dias, não me impediu de dizer não a D., por mais que me custasse, por mais que, no fundo, me apetecesse dizer que sim…

Fiz a viagem com calma. Não porque queria ser cuidadosa para nada me acontecer agora que estava tão perto de o ver. Não por isso, mas porque sentia uma ansiedade inexplicável rebentar dentro de mim. Sentia-me… e isto sim, custa-me admitir… sentia-me como se fosse encontrar um desconhecido por quem me tinha apaixonado através de… cartas, ideias, imagens… Levava comigo as memórias de todos os bons tempos passados, a que me agarrava com unhas e dentes, com medo de esquecer o amor, agora que o tinha de volta.

Vi-o. Vi-o e tudo rebentou. Mais uma vez não aguentei o choro, não aguentei nada, e simplesmente desabei sob o seu corpo, no mesmo sítio dos últimos tempos, mas com alguém a habitá-lo. Senti-o tocar-me, e tudo voltou.

B

 

Quando vi o meu filho de olhos abertos, com os mesmo pregados em mim, senti as minhas lágrimas correrem pela sua cara. Ignorei a sua cara de surpresa ao olhar com mais atenção para mim, e agradeci a Deus por estar presente nesse momento. Abracei-o com força, como o abracei… Abracei-o com força, senti os seus delgados braços tentarem, frustradamente, fazer o mesmo, senti a sua mente confusa e sem saber.

Mãe, que se passou? – perguntou-me, baixinho. Como é que tinha passado tanto tempo imaginando como seria quando acordasse, pensando em tudo o que faria, e nunca me passou pela cabeça como lhe explicaria?… Que se passara?

            – Filho, tu tiveste um acidente. Foi muito grave. Lembras-te de alguma coisa?

         – Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… – respondeu, após um olhar carregado de pensamento – Quanto tempo estive em coma? – perguntou, a medo.

            – Não, filho, tu não ias a conduzir. Ias para casa com o D. Era uma Quinta, final da tarde. Num cruzamento houve um carro que… não parou – senti algumas lágrimas quererem estragar o ambiente. Empurrei-as para dentro – e bateu no vosso. Foi uma sorte não terem morrido os dois…

         – Que aconteceu ao D.?

         – O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo!

 

         C

 

         Agora… quando é agora? Quando vi a minha mãe, senti esse agora como algo muito longe e perdido. Vi entrar pela magra porta do hospital a mesma cara de sempre, a mesma cara que me acolheu há não sei quantos anos atrás neste mundo, mas vestida de um rosto mais pálido, triste, e rugoso. Vi como os anos deslizaram, e saltei na minha mente para um estado em que não queria saber o tempo que havia passado.

            – Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… Estive em coma? Quanto tempo estive em coma? – ouvi alguém dentro de mim perguntar, para minha surpresa. O medo fez-se sentir de uma forma estranha e inquietante. Vivendo numa dormência de sentimentos constante, cada um era sentido como novo e misturava-se entre as definições aprendidas… O rosto envelhecido da minha mãe disse o que os seus lábios não tiveram coragem de admitir. Foi muito.

            Tentava focar-me no que me era dito, relembrado, mas queria apenas ver B. diante de mim. Queria saber se tinha esperado por algo que era tudo menos certo. Sentia o reboliço de emoções sem nome dançar no meu interior, sentia os meus pensamentos como contraditórios. Se por um lado queria que estivesse feliz, por outro queria que estivesse à minha espera nesta espécie de eternidade.

            – O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo! – não queria continuar, por mais um segundo que fosse, na minha ignorância. Agora que penso nisso, protegido pela segurança dos anos que me separam desses momentos, percebo a confusão que sentia dentro de mim. Queria, não queria, sentia, não sentia, sabia, não sabia…

            – Mãe, quando tempo estive em coma? – perguntei, tentando ser o mais sério e veemente possível. Enfrentei o seu olhar com o meu, prendendo a sua atenção e exigindo um número. Tinha de saber o mais cedo possível. Tivesse sido o tempo que tivesse sido, cada segundo agora era precioso, e o domínio do não-saber era um luxo a que não me podia dar.

            – Sete – ouvi a voz, à minha direita, dizer. Ao olhar para a sua face, não consegui distinguir anos ou expressões. Toda ela era as minhas lágrimas. Correu para mim e explodiu no meu peito, abraçando-me e chorando. A minha saudade era artificial. Como podia sentir a sua falta se apenas a tinha a uma noite de sono de distância. Advirá a saudade, realmente, do tempo passado, ou da sobreposição constante de novas memórias e imagens? A minha memória estava confusa o suficiente para poder parecer que tinha adormecido a seu lado e que nesse momento a via ao acordar. O vazio dos anos que sentia era para mim, tal como a saudade, artificial, algo que eu não sabia se sentia porque sentia, ou se sentiria algo completamente diferente se me dissessem que tinham sido sete dias.

             A. beijou os meus lábios secos, chorou por eternos momentos e disse que me amava.

            D

 

         Algum tempo depois de tudo, A. falou-me da dificuldade de tanto treinar e imaginar reacções e posteriormente desempenhar esse papel… Hoje não me recordo do que lhe disse mas o que senti ainda hoje sinto vez por vez. Senti como completamente injustas e estúpidas as suas palavras… Estúpidas porque estar dentro de mim naqueles momentos foi das coisas mais difíceis que alguma vez tive de enfrentar. Ver C., o meu amigo de infância, sorrir, despertava uma alegria imensa… que rapidamente era manchada pela imagem quase satânica de ver A. do seu lado, a sorrir igualmente, feliz por ele estar de volta. Tremia, tinha medo de tudo o que pudesse dizer, de tudo o que pudesse fazer. Mas sabia que conseguiria esquecer o idílio que era ter A. para mim, que conseguiria abandonar uma ideia que nunca tinha tido nada para ser real, e que tudo voltaria ao normal.

         três

 

         A

 

         Uma vezes desfeitos os sorrisos, veio o silêncio. Tinha diante de mim alguém que não conhecia. Como seria possível que tanto tivesse mudado se nada na verdade tinha acontecido? Como pode o nada ser tão forte a ponto de mudar tudo?

            Depois de C. acordar, depois da surpresa deixar, lentamente, o meu corpo, vieram as obrigações. O constante cuidado, as viagens para a fisioterapia, as perguntas intermináveis acerca do que tinha acontecido… o tanto para dizer que se atropelava e não passava no final de um triste soluço. Acho que apenas contava com o sacrifício da espera, imaginando que tudo seriam rosas daí em diante. Acho que talvez achasse que tinha sido castigada o suficiente, que ele, sem culpa nenhuma, tinha-me arrancado o passado… e sentia uma injustiça cruel ao ver o presente desaparecer dia após dia, juntando-se a essas memórias que fazia por esquecer…

            Sentia-me cruel, sentia-me desprezível, e via o seu olhar de incompreensão como pesados fardos que tentava aguentar e equilibrar, numa tarefa impossível que era ser para ele tudo o que tinha já sido. Os meus últimos anos nada tinham a ver com o que ele era. Quem eu era, a pessoa em que me tinha transformado, susceptível à nem sempre triste erosão do tempo manifestava-se em desalinho com a pessoa que ele deixara no tempo.

            As decisões acerca do que fazer foram tomadas por mãos que não as minhas. Mas não conseguia deixar de me ver nos bastidores, sem maldade mas com intenção, a manejar as minhas incontroláveis reacções, e acabar por ser eu a decidir, sem o fazer, o que fazer connosco.

            B

 

         Ver os olhos tristes dele era quase tão difícil e pesado como os ver fechados. Com o passar do tempo, face a dura realidade do que via, sentia nascer dentro de mim um ódio por A. que não conseguia compreender. Tentava ouvir a minha própria e suposta voz da razão. Tentava equilibrar o meu interior, procurando perceber o porquê do que via acontecer. Mas não conseguia, nunca consegui. Os olhos dele sempre falavam mais alto do que alguma coisa que eu conseguia ouvir. Os olhos dele sempre me mostravam o cinzento que ia dentro de si, as perguntas sem resposta, a espera…

            Eventualmente, o que começou a acabar num acidente, acabou aparentemente acidentalmente.

            C

 

         O fim pode ser mais pesado que a terrível consciência do tempo. Não sei quanto tempo dura um fim. Se escassos milésimos de qualquer coisa, se dias, meses, sete anos… Hoje, não sei se tudo acabou no momento em que o carro embateu na minha alma, se quando os zangados olhos de A. massacravam a minha pele, se quando tudo se materializou numa palavra…

            A paixão sentida no dia em que acordei abraçou-me de uma forma estranhamente reconfortante. Uma vez u… não. Ia dizer uma vez ultrapassado o choque… mas acho que nunca ultrapassei realmente o choque de ter perdido sete anos da minha VIDA, e com eles o meu primeiro amor. Passei, isso sim, por períodos. Tantos que já não lembro. Com o passar do tempo, sentia-me a alternar. Ora me sentia conformado e vazio, feliz por ter sobrevivido, desesperado com vontade de desaparecer…

            Passados os primeiros momentos, em que os nossos olhares falavam por nós, as palavras revelavam-se arrastadas e forçadas. Eu tinha curiosidade acerca de tudo o que se tinha passado, e sentia a vontade de A. em me contar, mas a dificuldade em o fazer. No meu interior, muitas vezes, sentia-me zangado, triste, revoltado… apetecia-me perguntar-lhe se também tinha estado em coma…

            O seu olhar castigava-me frequentemente. Sentia-me estranhamente culpado por ter estado tanto tempo distante. Sentia-me vulnerável e frágil, dependente de si, e sentia isso como injusto… sentia como injusto porque não queria pedir mais que os sete anos que me tinha dado, e sentia como injusto pois A. fazia, sem o querer, por mo recordar constantemente. Algo se tinha perdido, e os anos que desapareceram de mim acabavam por se revelar importantes apenas por significarem a perda de uma relação que em tempos julgara perfeita…

            Como pode o tempo ser tão importante? Como pode algo tão relativo determinar termos tão absolutos? Se os sete anos passaram para mim como uma noite de mau sono, como podem ter passado como décadas para A.?… Estas questões inundavam qualquer pensamento que tinha, revelando-me algo que eu fazia por afastar, por negar.

            As discussões, quando existiam, eram marcadas por tudo o que não era dito. Via as frases em todo o lado menos nos seus lábios. Queria ouvi-la dizer que estava farta, que tinha de seguir o seu caminho, mas nunca acontecia… As palavras ficavam suspensas no ar, apenas eu as via, apenas eu as sentia doer…

            D

 

         – Que foi? – perguntei, ao vê-la chorar. Abraçava-se a mim com força, e sentia o seu choro como exagerado. Não sei porquê, não conseguia imaginar o que quer que fosse que fosse justificativo…

            – O C. acabou com tudo! Com tudo… – respondeu, entre soluços. A surpresa foi tanta que, recordo-me, não tive a certeza que tinha ouvido correctamente.

            – Acabou?… com…

         – Sim, disse para eu seguir o meu caminho… – não fazia a mínima ideia de como me sentir… Não me sentia feliz, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento, não me sentia triste, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento. Hoje percebo as suas razões, mas ao ouvir A., que entre lágrimas me contava o sucedido, uma onda de incompreensão tomava conta de mim e um ódio que não queria sentir toldava a minha visão. Só pensava na injustiça que era A. ter esperado tanto tempo por C., apenas para este, passado uns meses acabar com tudo, deixando-a de rastos…

            Porém, como disse, hoje percebo. Não sei quando foi a última vez que vi o meu amigo. Talvez há quatro, cinco anos… Ainda vejo partes de si, apesar de que cada vez menos. Vejo partes de si em olhares esporádicos e perdidos de A., vejo partes de si no meu dia-a-dia que conta com a presença de alguém que foi, em tempos, eternamente sua. Hoje percebo o quanto lhe custava ver o olhar triste de alguém que já tinha abdicado de tanto, o quanto ele sentia que não lhe podia pedir para o continuar a fazer. Talvez simplesmente A. não pudesse colocar um final enquanto C. dormia, e talvez tenha tido a cobardia de o fazer quando este acordou, obrigando-o a oferecer-lhes as palavras que, sem querer, A. tanto queria… “segue o teu caminho”…

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