Desalinho [2009]Ficção

Café Rouge

            O cenário era o mesmo de sempre. O dia, ainda que não o mesmo de sempre, exactamente como os outros. Despertara meia hora antes, tomei banho, apanhei um táxi, que me deixou em New Street. Acendi um cigarro e subi a rua, já com decorações natalícias e sorrisos infantis, em direcção ao Café Rouge. Ao chegar, senti no ar uma melodia francesa, como sempre, e sentei-me no canto perto da janela, como sempre.

Os sorrisos da empregada foram coroados com um levantar de sobrancelhas.

            – O mesmo? – disse, sem dizer.

            – Claro – respondi, sem o fazer.

            Olhei à volta e deliciei-me mais uma vez com a decoração francesa do local. Os vidros a toda a volta, adornados com molduras de madeira vermelha e sugestões escritas com letra de meio de século. As cadeiras vermelhas permaneciam, na sua maioria, à espera de alguém, que talvez viesse, talvez não viesse.

            Uma vez com a minha primeira garrafa de Bordéus tinto na mesa, abri os olhos e admirei as pessoas que passavam na rua. Enquanto bebericava lenta e apaixonadamente o meu vinho, procurava a pessoa que me inspiraria e me deixaria a escrever. Com calma, esperei, consciente das horas que poderiam passar até sentir algo a fluir dentro de mim.

            Entre cigarros na rua, copos de vinho e músicas, a minha visão apresentava-se emoldurada e lenta, e a minha precisão em acertar nas teclas certas manifestava-se zangada. “Nada a preocupar” – pensei – “algo há-de aparecer” – concluí. E, naturalmente, apareceu. A noite galgara terreno, conquistando o seu espaço, trazendo consigo o frio que enregelava os dedos que aguentavam o cigarro, e vi-a a entrar pela porta. Os primeiros sinais agradavam, e por isso decidi dedicar alguma atenção. Sentei-me, pedi a segunda garrafa.

            Sentou-se a duas mesas de mim, quis imaginar que o fez de propósito, apenas para ajudar o meu sangue a percorrer-me com mais alegria. Tinha cabelo negro, liso, com uma franja impecavelmente certa a uns escassos milímetros das suas longas pestanas, que protegiam uns grandes olhos verdes. Os seus lábios eram finos mas perfeitamente delineados, e o seu queixo largo, mostrando-me de que zona da Europa viria. Escolhi algo suave e sedutor, para meu próprio prazer, e por isso imaginei que seria Bielorrussa. Nunca tinha conhecido ninguém desse país, e isso despia-me de qualquer imagem senão a promissora perfeição que quase cheirava. Tinha um casaco preto e apertado, e umas calças de ganga falsamente rotas, acabando com umas simples sapatilhas pretas. Não conseguia começar a escrever, queria sorver cada detalhe seu e, para dizer a verdade, estava a achá-la demasiado interessante para perder tempo com palavras naquele momento.

            A empregada aproximou-se e recebeu o seu pedido, enquanto ela sacava de um cigarro. “Interessante” – pensei – “Tenho a certeza que ela sabe que não pode fumar aqui” – concluí.

            – Desculpe, mas não pode fumar aqui – disse a simpática empregada.

            – Sim, claro, desculpe – respondeu ela, num Inglês destreinado, com um sorriso, imagino, malicioso e um piscar de olhos de sotaque eslavo.

            Quando me preparava para encetar algo escrito inspirado em si, algo aconteceu, que me manteve preso. Olhou para mim. Senti a sua cara como familiar, afastando a ideia face a impossibilidade de poder alguma vez esquecer alguém com linhas tão exactas e glamourosas. Bêbedo que estava, e por isso sem consciência acerca da polidez do olhar de meio segundo, mantive o seu olhar colado ao meu, tentei prendê-lo e chamá-la, sem na verdade nada fazer a não ser olhar com ar de interessado. Senti-me extremamente sedutor. Ela nada fez, claro. Desviou o seu olhar de mim para a fumegante chávena diante de si. Aí, baixei o meu próprio olhar, pensei nas primeiras palavras a escrever, mas mais uma vez não consegui… pois vi, para meu espanto e desprazer, vindo duma outra qualquer galáxia, onde as pessoas são mortais e aborrecidas, um jovem homem, aparentemente da nossa idade, e concerteza Inglês, chegar. Cumprimentou-a com um sorriso, e estava a pedir a sua bebida, quando outro chegou. Numa sucessão de momentos bizarros, quando dei por mim, estava sentada com cinco Ingleses saídos do mesmo molde, eles próprios estranhando a situação, mas fazendo o seu melhor por impressionar. “Estranho” – pensei. Não sabia ao certo o porquê de achar aquilo estranho, simplesmente o achei. Quem sabe imaginasse que se estava à espera de alguém, apenas poderia ser alguém interessante e misterioso como ela, e como eu. Estava enganado.

            Mais alguns copos apareceram e desapareceram da minha mão, e a frustração de não conseguir ouvir as conversas que tinham começava a deixar-me desesperado. Gradualmente, um certo desconforto começou a tomar conta de mim ao perceber que, apesar de não ouvir o que diziam, ela era, nitidamente, foco da atenção de toda a gente, foco do desejo de toda a gente. Para minha própria paz, decidi que eram apenas amigos, mas algo me dizia que qualquer coisa ali não batia certo. Via-a rindo aberta e sedutoramente, agitando levemente no ar o seu cappuccino, e via os restantes britânicos como, ora adorando o diabo, ora estudando a sua estratégia. Estava a perturbar-me saber que aqueles parvalhões sem substrato estavam mais perto de si do que eu muito provavelmente alguma vez estaria.

            Culpando o vinho pela minha paranóia e irritação, decidi respirar fundo, fechar os olhos por uns segundos, tentando, em vão, reagrupar. Quando também estas estratégias falharam, saí para fumar um cigarro. Um leve Vento perfumava as ruas árcticas e começava a sentir o aroma que antecipa qualquer Sexta à noite. Tirei o meu isqueiro e acendi o cigarro.

            – Está a conseguir escrever muito? – ouvi, atrás de mim, a sua voz perguntar. Eu estava à porta do Café Rouge, virado para o Costa, o café italiano, e ela tinha acabado de sair, tirando um cigarro. A sua voz, ainda que ainda distinta, soava-me diferente. Soava-me britânica.

            – Nem por isso. Estava à espera de inspiração, mas as coisas não correram como planeado – respondi, sem me mostrar surpreendido em ter reparado em mim, ou no que fazia. Voltei-me para o seu gigante e perturbador olhado. Sentia-me nu.

            – Que se passou? – perguntou, dando-me a certeza de que era, afinal, Inglesa. Estranho.

            – Algo que prometia muito sem precisar de ajuda acabou por se revelar estranho, fruto da ajuda que teve.

         – Estou a perceber… – estaria? – Mas talvez hajam certos detalhes na VIDA, que apenas por estarem fora do nosso controlo, não a tornam menos interessante – lançou-me, com um olhar que me dizia que eu percebia do que falava. Na verdade não fazia a mínima ideia, e isso deixava-me confuso. Percebia do que falava, mas não percebia o seu olhar carregado de certeza e duma eventual cumplicidade. Sentia o meu julgamento preguiçoso, o vinho a estalar nas minhas veias, e uma necessidade de a agarrar e raptar. Como resposta, limitei-me a lhe oferecer um mentiroso sorriso, dizendo que percebia exactamente o que dizia, ainda que não o fizesse. Sem mais nada dizer, voltou a entrar, deixando-me a navegar no delicioso mas exasperante mar de incerteza que o seu sotaque adivinhava, os seus lábios confirmavam e o seu olhar acentuava.

            Algo nos ligava, sabia-o bem. Não sabia o quê, mas da incerteza e dúvida que me oferecera, podia apenas retirar a certeza de que tinha reparado em mim, como eu tinha reparado em si. Seguro de que pessoas como ela apenas reparavam em pessoas como eu, voltei a entrar, sentindo-me em vantagem numa competição de que nem sabia, até então, fazer parte. A competição pelo seu interesse e atenção. Estávamos no mesmo barco, na mesma situação, eu e ela, com a única diferença que ela apenas competia contra um sim ou um não meu, ao passo que eu competia com a minha sedutora hesitação contra o cru sim do grupo de Ingleses.

            As letras começaram a surgir pelos meus dedos, e comecei a descrever, com dificuldade, uma estória que envolvesse alguém como ela. As palavras arrastavam-se penosamente, os parágrafos eram puxados e pesados, mas após cada página concluída percebia a beleza do que estava a criar. Não conseguia defini-la ou descrevê-la com precisão, era demasiado complexa e perfeita para o fazer, mas o meio caminho entre o nada e o tudo é sempre mais belo e imponente que a plenitude de algo apenas razoável. Para que quero eu pessoas razoáveis? Para que quero pessoas que são como toda a gente?

            Para meu sossegado prazer, os nossos olhares cruzavam-se vez por vez. Porém, nessas vezes, não fazia por o aguentar, escolhendo, por vezes, ser eu próprio a dispersar, uma vez com certeza do seu interesse. As horas passavam, e a escrita morria lentamente. Sentia-me estagnado, morto por breves instantes, sedento de algo que mais me inspirasse. Precisava fazer algo, precisava de ter algo. Calmamente arrumei tudo o que tinha, pedi um café e um whiskey, paguei, e entreguei-me à penosa e incontrolável espera.

            Não fiz por mostrar a minha decisão, a urgência de decidir, limitei-me a saborear o pesado sabor do Johnny Walker Black Label, encostado para trás na minha cadeira, tecendo linhas na minha imaginação que adviriam da sua acção. Eventualmente, o momento chegou, e eu percebi o porquê de tanto ter tardado. Num grupo de seis pessoas onde quase toda a gente fuma, é fácil esperar que uma companhia para um cigarro se encontre facilmente. Brilhante. Inteligente e calculista como antecipara, na minha escrita, ser, esperou que os seus… amigos… fumassem os seus cigarros, e depois saiu, para fumar o seu, sozinha. Peguei nas minhas coisas, e saí.

            Ao sair senti o aroma do seu tabaco misturado com o seu próprio, um perfume adocicado e desconhecido.

            – Estamos a perseguir o outro alternadamente? – perguntou, sem me olhar. Dei um passo, e ficámos lado a lado.

            – Talvez. Mas estou farto de aqui estar. Preciso de algo que estou a deixar de ter – respondi, tirando eu próprio o meu cigarro.

            – Ai sim? E isso é o quê?

         – Inspiração. Apenas podemos esticar algo brilhante até um certo ponto. Enquanto o fazemos sentimos que estamos a explorar os cantos de algo que poderá ser genial. Mas chega a uma altura em que não percebemos se o fazemos porque assim o é, ou porque queremos que assim seja. É complicado ser escritor, sabe?

         – E de que precisa agora? – perguntou, virando-se, lentamente para mim. O seu olhar era de desafio, mas estava a ser difícil, para mim, perceber se estava com interesse ou pura diversão, consciente do seu poder.

            – Aquilo que preciso… vou tentar ter – respondi, consciente de que o que ia fazer poderia deitar por terra toda e qualquer hipótese. Aproximei o meu rosto do seu. O seu olhar abriu-se de espanto e recuou ligeiramente, com medo – Espere aqui, por favor – pedi, voltando a entrar. Entrei no hall do café, abri a porta, e dirigi-me à mesa dos seus… amigos – Desculpem, meus caros, mas a vossa amiga pediu para lhe levar isto – e, perante o olhar de espanto de todos e de algumas perguntas que não recordo, tirei, gentilmente, a sua bolsa. Tirei uma nota de vinte libras do meu bolso – Acho que isto deve dar para a conta total dos vossos cafés e coisas… Fiquem bem – e saí, piscando o olho, com a sensação de ser a pessoa mais interessante do momento em Birmingham inteiro.

            Reparei que não se tinha virado nunca, e pensei se imaginara o que eu tinha ido fazer. Quando voltei a sentir o seu aroma, dessa apenas do seu perfume, toquei-lhe ao de leve no braço. Ela voltou-se e voltou a abrir o seu olhar, pleno de espanto, ao ver a sua bolsa.

            – Vamos? – sugeri.

            Os seus olhos tardaram-se nos meus. Aquele era o momento em que algo mudaria. Agarrei cada partícula da sua íris e mostrei, com um abraço sem braços, como vir comigo era a melhor opção.

            – Quem és tu, estranho? – perguntou, interessada.

            – Queres que te diga que posso ser o que tu quiseres? Não o vou dizer, porque não é verdade… Aí não seria ninguém. Pensa apenas que, efectivamente, posso ser qualquer pessoa, desde que te dês a ti própria a oportunidade de o descobrir – os dados estavam lançados, o destino estava pedido, à espera de uma resposta. A sua hesitação durou alguns segundos, mas eventulamente caminhou em frente. Segui-a, uns passos atrás, a fumar o meu enésimo cigarro, a consequência que se tem de ter depois de se ter bebido o que eu tinha bebido. Interessado, acelerei o meu passo, deixando-me, ainda assim, um pouco para trás, apenas o suficiente para lhe fazer sentir que a seguia. A iniciativa tinha sido minha em sair, mas aparentemente a sedutora estranha queria dominar. Por mim tudo bem. Descíamos a rua, ainda com um silêncio que me parecia desafiador, não querendo eu ceder. A batalha dos silêncios será sempre das mais desconfortáveis, mas das mais prazeirosas, uma vez que ganhemos. Mas, e se não ganhamos? Diferentemente de quase todos os outros tipos de batalha, se ninguém ganha, ambos perdem. Não há empate que possa advir de uma ausência de palavras. Escolhi perder. “Ok, é só uma batalha…” – pensei, quem sabe apenas para tranquilizar o meu orgulho ferido.

            – É verdade que fui eu que sugeri desaparecermos, mas estou a ver que sabes para onde vamos. Estou errado? – perguntei.

            – Não estás errado. São seis da tarde, estamos na Inglaterra, que te parece que possamos fazer agora que seja aquilo que te possa dar inspiração? – respondeu, perguntando. Verdade era que muito poderíamos fazer que me desse inspiração. E bêbedo como estava uma ideia fez por se impôr na minha mente como o King Kong no Empire State Building. Todavia, tive o discernimento de a arrumar, pensando que há passos que têm de ser dados se se quer alcançar o desejado. Avançar esses passos, ou níveis, em detrimento de um prazer, ou necessidade de um prazer imediato pode, ou deitar tudo a perder, ou perder tudo deitados, pensando nas conversas sedutoras que não se teve.

            – Jantar?

         – Pois claro…

         – Sabes então onde vamos?

         – Byzantium. Conheces? – ainda mais interessante. Felizmente, facilmente percebia que a sugestão de sedução que me inspirara se confirmava. Poucas coisas consigo, neste momento, nomear, mais frustrantes que uma promessa de misteriosismo não cumprida. As pessoas não têm de ser inteligentes, belas ou engraçadas. Precisam simplesmente de me mostrar menos do que aquilo que têm para me cativar, para fazer nascer em mim o desejo de o descobrir.

            – Conheço. E acho-o bastante interessante.

         – Interessante? Um adjectivo que não se houve muitas vezes em relação a um restaurante.

         – Sim, interessante. Adoro a maneira como tudo sugere algo no Médio Oriente, a começar pelo nome e a acabar na decoração, mas é, no entanto, um restaurante de comida espanhola. Gosto destes paradoxos. Vão contra o que é suposto, e isso não pode não ser interessante – vi-a sorrir, à medida que entrámos num black cab em New Street, a estação.

            – Então gostas de sugestões não confirmadas?… – sugeriu, como se tivesse estado na minha mente momentos antes, quando pensava na sua sugestão de sedução. Como responder se acabava de me contra…pensar?

            – Boa pergunta… Se tiver de escolher sem saber, prefiro ser surpreendido. Mas se souber do que estou a falar, quem sabe, fruto da minha estúpida e redutora condição enquanto humano, prefira ter o que espero – respondi, da melhor maneira que pude.

            Quando disse ao taxista para passar por Selly Oak surpreendeu-se. Quis imaginar que se assustara, porque isso, por alguma razão, dar-me-ia algum prazer. Tranquilizei-a dizendo-lhe que apenas queria deixar o computador (onde tinha começado algo com um grande potencial) em casa, e que depois poderíamos seguir para Kings Heath.

            Quando chegámos, encontrámos o belo restaurante preparado para encher, mas, no momento, vazio. Tinha lá estado um par de vezes e não só o já referido me agradava, como a comida era excelente, e tinha um certo ambiente a meia luz que me permitia voar para longe de Inglaterra por duas ou três horas. Queria que a cabine estivesse livre. A cabine era uma parte do restaurante na ponta oposta à porta, longe de todos os curiosos olhares, longe de todos os sotaques e lembranças de estar na Europa, de ser eu, longe de tudo o que era, para o melhor e para o pior, conhecido.

            – A cabine está livre? – perguntei ao simpático britânico, que com a sua nacionalidade contribuía para toda aquela mistura.

            – Hum… acho que… sim, sim, está. Deseja sentar-se lá?

         – Pois claro…

         Quando respondi apercebi-me que a minha mente se tinha afastado, ainda que por apenas uns minutos, da minha acompanhante. Interessante. Um instantâneo medo de que sentisse a sua opção de ter vindo comigo como um erro, tomou conta de mim. Que fazia? Puta que pariu a bebedeira e os momentos mono-tarefa que por vezes nos oferece! Mas… interessante. Talvez eu estivesse de tal forma seduzido por si que optava por ver tudo como interessante, mas, ainda assim, pensando na maneira suave e subtil que trazia consigo, não conseguia deixar de pensar naquilo como especial.

            Quando nos sentamos, pedimos um Porto como aperitivo.

            – Como te chamas? – perguntei.

            – Então?… Tanto misteriosismo e agora vais-me perguntar algo tão banal como o meu nome? Esperava mais. E a seguir, perguntas qual o meu filme preferido? – que pancada forte senti. Como poderia ser que tinha mais talento do que eu? Não, não o podia ter. Achei esta sua resposta como genial, li-a em futuros textos ou estórias minhas, li-a como nunca a tinha escrito e vi, diante de mim, a verdadeira fonte de tudo belo que poderia escrever nos próximos tempos. Esta simples forma de me agredir tinha-me mostrado o quão profundo podia ir, o quão complicadamente simples o seu ego era, o quão estúpido eu poderia ser, se imaginava que estava sempre um passo à frente de toda a gente.

            – Sim, tens toda a razão. Se bem que estar no teu lugar, neste instante, é mais fácil que estar no meu. Decidi ir, e fui. E correu-me mal. Mas, ainda que seja um cliché, é sempre mais fácil criticar do que iniciar… Concordas?

         – Concordo. Então reinicio eu, se quiseres – disse, debruçando-se sob a mesa, após pousar o copo de Porto vazio – Que queres de mim, doce estranho?

         – O que quero de ti neste momento será exactamente o que estou a ter. Bofetadas de realidade e de surpresa.

         – É assim tão surpreendentemente alguém pensar por si próprio?

         – Estás a gozar?

         – Não, não estou a gozar. Porquê?

         – Porque a resposta é muito mais simples do que a pergunta, ainda que essa esteja já nos píncaros da simplicidade. Claro que é surpreendente alguém que pense por si próprio. Hoje em dia pensamos todos da mesma forma. Não sei, é como se algures entre ser criança e nos tornarmos finalmente adultos, alguém nos dá um guião de merda que toda a gente segue, sem saber que o faz. Qualquer relação com alguém é sempre igual. As pessoas mudam-no um pouco por vezes, mas a grande maioria não vai mais além do que dizer, pelas suas palavras, o que já está escrito… e isso é profundamente triste.

         – Perdes então a esperança na humanidade?

         – Perco a esperança nas relações que se podem criar. A água é sempre a mesma em qualquer mar diferente. Talvez seja muito difícil e assustador sair um bocado da fotografia. O eterno medo da exclusão afigura-se como avassalador…

         – Exclusão?

         – Sim, quem se atreve a mandar fora o guião tem de improvisar à medida que vai vivendo, e a falta de controlo que as pessoas sentem em relação ao improviso é vista como assustadoramente real…

         – Então e tu, doce estranho, em que campo te inseres?

         – Estás a ver? Ainda que seja compreensível a tua pergunta, eu antecipei-a. Guião? Não faz sentido que ma faças, pois se o estou a criticar, porque faria eu parte dessa massa não-pensante? – perguntei, quase indignado. Nessa altura o senhor britânico trouxe-nos as tapas que havíamos pedido quando nos entregou o Porto. Pedimos uma garrafa de Tulha, o único vinho Português que vendiam. Vi que não se deixou levar pela minha suposta indignação que, agora que penso nisso, vejo como uma eventual defesa.

            – Concerteza já ouviste falar de cinismo, falsidade, farsantes… Porque não podes tu ser como os outros? Alguém com consciência do guião que todos temos, certo… e aí serias diferente. Mas significará o facto de teres essa consciência, que não o segues? Ou fará de ti um covarde por ainda assim o seguires?

         – Covarde?

         – Sim, meu caro… Porque se os outros não têm consciência do guião de que falas, nada mais são senão cegos. Tu se tens e o segues, serás um covarde… – sorriu. Lindo.

            – Já reparaste como estás, de certa forma, a dar já como um dado adquirido que eu o sigo?

         – Claro que sim. Mas se pensares bem, não me respondeste. Deste-me uma outra pergunta, disfarçada de resposta. E isso pode chegar para muita gente, sabes?… Mas apetece-me ir mais além.

         – Hum… estou a ver que escolhi a pessoa certa.

         – Escolheste? – perguntou, acentuando a palavra de uma forma que me perguntava se realmente tinha escolhido. O seu sorriso e a fuga do olhar quase me perguntavam se não tinha sido eu a ser escolhido.

            – Bem… estou a perceber o teu convite… Vou fingir que não o percebo, porque é mais fácil do que o rejeitar… A resposta é que é impossível saber se sigo o guião ou não. Mas quero acreditar que não…

         – Porque é tão difícil mergulhar de cabeça numa certeza?

         – Tens razão, não é. Foda-se, eu não sigo guião nenhum!… Não estaria aqui se o fizesse. O que se está a passar agora mesmo não acontece com qualquer pessoa.

         – Nisso concordo contigo… – respondeu, sem me olhar – Nem o que se passa nem o que se passou… – acrescentou, deixando-me sem saber a que momento se referia.

            – Que queres dizer com isso? – perguntei, suspeito. Um milhar de situações viajavam na minha mente, procurando uma solução que fizesse sentido para tal observação.

            – Não sei… imagino que o que quer que se tenha passado na tua VIDA e, se queres saber, na minha, não tem exactamente ido de acordo com o guião… – disse-me, tranquilizando-me por breves instantes. Apenas breves instantes pois algo não me soava bem. Tinha-me parecido evasiva mas, por outro lado, nada faria mais sentido do que essa mesma conclusão. Ainda me bailava na mente a maneira como me tinha perguntado se eu realmente a tinha escolhido, ou se, na verdade, tinha sido eu a ser escolhido… Não sabia se queria ir por aí. Não sei porquê, soava-me a terreno perigoso que eu não queria pisar. Não naquele momento, de qualquer maneira…

            À medida que fomos falando o vinho foi desaparecendo, a comida igualmente, transformando o meu estômago na mais bela amálgama de sabores e aromas, mas deixando o meu cérebro à deriva num mar de perfume e frases deixadas com o sentido a meio. Lançados que estávamos nas conversas raramente sobre trivialidades, fomos sentindo o restaurante esvaziar. Sentindo, não vendo, pois de onde estávamos ninguém víamos, e ninguém nos via. Tínhamos permissão para ser quem quiséssemos por aquelas horas. Felizmente, creio que nenhum de nós foi diferente do que seria caso estivéssemos sentados num lugar mais visível. É precisamente essa falta de guião que temos que nos permite agir exactamente da mesma forma quando sozinhos, ou quando acompanhados. Para quê preocupar-me com o julgamento do estranho para quem não tenho cara nem feitio? A maior parte das pessoas passam umas pelas outras percebendo apenas que há almas perdidas ao redor. Se no final de um dia em que passamos por milhares de pessoas a quem olhamos no rosto, nos mostrarem um livro com todas as fotografias das caras vistas, de quantas nos lembraríamos? Três, cinco, sete?… Culpo a memória pela inabilidade em recordar tantos, culpo o dono da mesma pelo recordar tão poucos.

            – Estás bêbedo, não estás? – perguntou-me, enquanto esperava, ao telefone, para chamar um táxi. Sorria.

            – Bêbedo, eu? Jamais! Jamais estaria bêbedo desde o primeiro momento em que falei contigo! – respondo, zombador – E tu?

         – Eu não estou bêbeda. Estou é a pensar diferente e com menos coordenação motora devido à quantidade de álcool que bebi!

         – E também estás a falar um bocado enrolado…

         – Sim, e isso também… Mas agora bêbeda? Na…

         – Onde vamos agora? E porque é que me parece que tu é que estás a decidir todos os sítios onde vamos?

         – Vamos ao Oh Velvet!, em Broad Street. Mas porquê, meu querido, importas-te que escolha por ti? – perguntou, sedutoramente. Estávamos já dentro do táxi. Importava-me?

            – Curiosamente… não! Para variar até sabe bem ir nas escolhas de outras pessoas. Geralmente tenho um certo hábito de levar as pessoas para onde quero mas dar-lhes a entender que a decisão foi delas.

         – Interessante. Como fazes isso? – perguntou, interessada, e com cara de quem sabia perfeitamente como o fazer mas queria apenas trocar estratégias.

            – Sei lá, no momento é que sabes… Mas uma opção muito simples é falares no sítios e dares uma boa opinião acerca do mesmo. Depois falas de mais três ou quatro e não te mostras tão entusiasta. Muitas vezes as pessoas acabam por escolher o sítio que queres.

         – E se já conhecem o outro sítio onde querem ir e tu não?

         – Aí dizes algo tipo: “ok, podemos ir, mas da outra vez em que lá estive aquilo por acaso estava assim e assado, e estava lá não sei quem… por acaso acabei por ir ao sítio X e até salvei a noite…”. Aqui também muita gente muda de opinião, optando por ir para onde queres, e aqui tu dizes: “sítio X? Ok, tu é que sabes!”. Mas claro que não é cem por cento eficaz. Por vezes encontro alguém com metade da minha inteligência, o que é muito, e o dobro da teimosia, o que é astronómico…

         – Não és muito modesto, pois não?

         – Porque é que dizes isso? – perguntei, numa óbvia ratoeira, sendo que sabia porque o perguntava.

            – Bem, dizes que por vezes encontras alguém com metade da tua inteligência… Só pode querer dizer que te achas mais inteligente do que a maioria das pessoas. Certo?

         – Claro. Mas continuo sem perceber como pode isso ser falsa modéstia. A modéstia é um conceito virtual! Apenas advém da falta de capacidade das pessoas avaliarem as suas próprias qualidades, ou então, mais frequentemente, da falsidade. Se eu sei que sou uma merda a jogar golf mas digo que sou bom, estou a ser falso mas passa, dependendo de como o digo, como arrogância. Se eu sei que sou muito bom a jogar golf mas digo que sou uma merda, estou a ser falso mas passa, dependendo de como o digo, como modéstia. Daí que sim, sei que sou inteligente, porquê o negar?

         – Em que é que não és tão bom então?

         – Na cama. Sou terrível! – disse, com um olhar sério e desapontado. Os seus olhos arregalaram-se em reticências mentais.

            – Tens problemas de… – não acabou a frase mas levantou ligeiramente o indicador direito.

            – Não, – disse, sério – sofro de umas insónias que nunca mais me deixam… – suspirei. Aguentei a cara de sério até rebentarmos a rir, quem sabe achando mais piada do que realmente tinha. Acho que foi uma coisa do momento… Agora não acho assim tão engraçado…

            Chegámos ao Oh Velvet!, anunciava o relógio a meia-noite. Sendo Sexta-Feira, o bar estava cheio. Pessoas mergulhadas na realidade alternativa que é a embriaguez misturavam-se e conversavam entre si, dando asas ao que todos poderíamos fazer enquanto sóbrios mas nem sempre, ou quase nunca, o fazemos… Conhecer pessoas novas. É uma merda, porque pelo menos neste capítulo, vejo-me com a merda do guião… Digo a mim mesmo que ninguém é suficientemente interessante, sendo isto, provavelmente, uma defesa para recusar que ainda guardo comigo alguns capítulos do malfadado livro que nos guia a VIDA. Penso na bíblia, e na falsa segurança que, durante milhares de anos, incutiu nas pessoas, como o verdadeiro manual de existir. És mau, vais para o Inferno. Não pode ser mais simples que isso. Deveriam ter uma versão actualizada, estilo código da estrada, em que nos dissessem o que significa, realmente, ser mau. Fazer o quê? Não fazer o quê? Nem mal a mim nem ao próximo? E se o mal que me faço me dá prazer? E se o bem que faço ao próximo o deixa a sentir-se pequeno e necessitado? Onde está a última barreira, a última linha que nos permite aferir com precisão o que realmente é fazer mal a alguém? Depende da intenção? Tudo bem… mas e se faço mal a mim sem intenção? E se me destruo iludido que é a melhor coisa a fazer pelas maneiras como me posso sentir? E se destruo o próximo para salvar o terceiro, ainda que não o consiga? Não consigo parar as perguntas dentro de mim, muito simplesmente pela falta de resposta que têm, e pela facilidade que tenho, e que qualquer pessoa que pense tem, em as contornar.

         Toca uma música que me agrada. Um soul cujo autor não conheço, mas que deixa toda a gente, não aos pulos, mas com um suave, e quem sabe sedutor, abanar de cabeça.

            – Vens aqui muito? – perguntei, vendo-a inclinar-se um pouco. Adivinhei o que ia dizer – Sim, eu sei que esta pergunta é outro dos verdadeiros quebra-gelo que vêm no manual. Mas estou realmente interessado. E não penses que tudo o que se faça que vem no guião tem realmente de ser um seguir cego do mesmo.

         – Que queres dizer?

         – Quero dizer que, sabendo que existe o guião, escolhemos segui-lo ou não. Por exemplo, eu posso querer dizer determinada coisa que por acaso está no guião… mas se não a disser só porque lá está, então não sou livre. Estou preso em contrariar essas ideias.

         – Faz sentido, sabes? Acho que tenho um certo prazer em discordar contigo e desafiar-te, mas às vezes tenho de aceitar… – sorri – Que foi?

         – Nada. Achei piada ao facto de eu estar a falar no espírito do contra e tu o confirmares exactamente – respondi, começando a sentir uma vontade quase irresistível de a beijar. Estávamos sentados no canto, mergulhados num sofá, de frente para a pista de dança mas, mais uma vez, no canto mais recôndito do estabelecimento. O sofá não era grande, por isso tínhamos de nos tocar. Sentia a ganga das suas calças em fricção com a das minhas, de cada vez que nos mexíamos, originando um suave vibrar que gostava de sentir e tentava agarrar – Que queres beber? – perguntei, levantando-me.

            – Um Baileys bem servido, pode ser?

         – Claro – pisquei o olho. Começava a agir um pouco em auto-piloto, confesso. A cada segundo que passava sentia a energia entre os nossos corpos puxar-me mais e mais para si, mas não queria arriscar um beijo. Queria sofrer mais um pouco. Que seria se mo rejeitasse? Brilhante. Teria o seu quê de estúpido e humilhante para mim, mas seria do mais puro e genuíno possível. Sentir-me-ia pequeno, mas sentiria alguma coisa. Que seria se o aceitasse? Brilhante. Teria o seu quê de mágico glorioso, como o culminar de um processo de escalada que começaramos antes. Talvez consigamos, por vezes, guiar os acontecimentos de forma a que, seja o desfecho o que for, é impossível ser mau. O que é mau é não ter, pior ainda não pensar que se pode ter. Com um beijo recusado, é certo que haveria muito que não teria, mas teria, por outro lado, um coração lacrimejante a curto prazo, umas horas de reflexão, e umas horas recentes de geniais conversas. Teria a imaginação acerca do que poderia ter sido e a realidade do que tinha efectivamente sido. Como teria sido se não a tivesse trazido do Café Rouge? Teria apenas horas e horas de pensamentos ilusórios e massacrantes acerca de todas as coisas que poderia ter feito e não fiz. É certo que a decisão de estar consigo possa ter implicado ter abdicado de alguém ainda mais interessante, ainda mais mágico, mas no momento em que se vive essa espécie de realidade, não há lugar para comparações ou ideias. Tudo se vive no instante em que se respira, tudo o que se imagina advém de uma acção a um par de segundos de distância. Quando a vivência de momentos aparentemente especiais se acompanha com a ocupação da mente acerca das realidades de que se abdicou, então o que se vive deixa de ser uma realidade em pleno, mas uma irrealidade clandestina e sorrateira, que retira qualquer genuíno prazer dos toques que se dão, que retira a mistura necessária à aborrecida plenitude vivida.

            Quando voltei para si, falava ao telefone. Mais uma vez senti o meu instinto animal respirar. Para ser sincero, apenas bastava um rugido para me sentir como o rei da selva ameaçado. Por fora, tudo normal, por dentro, o fervilhar da adrenalina que não está contente. “Não há crise” – pensava.

            – Com quem falavas? – perguntei, depois de lhe ter estendido a sua bebida.

            – Porquê? – perguntou, prolongando a vogal final apenas o suficiente para se mostrar curiosa com a minha curiosidade.

            – Gostava de saber – respondi, depois de dar um gole da minha cerveja.

            – Quem é que queres que eu diga que era?

         – O teu namorado… não, o teu marido – o seu olhar apresentava-se-me como sem saber o que fazer acerca da minha sugestão. Eu próprio organizava-me e perguntava-me o porquê da minha pergunta.

            – Quero sentir-me ameaçado, como se fosses uma ilusão.

         – Ilusão?

         – Sim. Ou melhor… como se a razão pela qual estás aqui fosse uma ilusão para mim. Um truque do destino ou pura malvadez tua. Aceitaria qualquer uma, já agora.

         – E porque te queres sentir ameaçado?

         – Não sei. Pensei que já que me senti por momentos menos como humano e mais como animal, mais valia continuar. Quem sabe nós sejamos mais nós quando sob ameaça. Quem sabe quando, sentindo que temos de lutar por algo, nos deixemos de merdas – respondi. Aproximei-me de si à medida que falava. A antepenúltima e a penúltima palavra foram proferidas a dois centímetros dos seus lábios, a última não o chegou a ser, pois os meus lábios mostravam-se ocupados em sentir o toque dos seus, molhados com lip gloss de sabor a amora. A sua boca era quente, a sua língua sabia-me a leite com chocolate. Não estava muito confortável, estava um pouco torcido no sofá, pelo que me afastei, com estilo, ligeiramente, deixando a bola no seu campo, mostrando-lhe que, decididamente, eu estava decido.

            A música ao nosso redor baixou de tom por uns eternos momentos. Acho que ainda se fazia ouvir ao mesmo nível, mas os meus sentidos não se podiam dar ao trabalho de ouvir algo que não fosse quem tinha à minha frente. Reparei que duvidava de algo. O seu olhar perfurador manifestava a surpresa e a infantilidade de se ter mais do que se tinha previsto. Como se tivesse dominado toda a interacção até então e, subitamente, tivesse perdido o controlo duma forma estranhamente prazeirosa. Seria que queria jogar comigo, deixar-me a querer tudo e a não dar nada? Seria que aquele beijo não deveria ter acontecido?

            – Será que te deixei sem palavras pela primeira vez? – perguntei, genuinamente intrigado. Deu um gole no seu baileys e olhou para outro lado que não para mim. Que jogo era aquele? Para dizer a verdade, gostava, mas sentia-me um pouco sem saber onde tinha pisado.

            – Tu és, realmente, diferente – proferiu, ainda sem me olhar.

            – Pensava que já tínhamos concordado nisso… – respondi. Quem sabe apenas “porque sim”, começava a ficar chateado. Gostava de me sentir assim, sentia-me como um menino embirrado, e isso era novo para mim.

            – Que faço eu com alguém diferente? – perguntou, virando-se novamente para mim, cravando as suas pérolas azuis nos meus olhos bêbedos.

            – O que tens a fazer é muito fácil… Muito mais fácil do que aquilo que costumas fazer com quem é igual…

         – Que queres dizer?

         – Quero dizer que com alguém diferente é mais fácil, porque basta fazeres diferente.

         – Estou a perceber… mas em que medida é que fazer diferente é mais fácil do que fazer igual? – perguntou, acabando a sua bebida. Antes de me deixar responder abandonou-me por uns breves minutos, retornando com mais um Baileys para si e uma Fosters para mim. Deslizei um pouco no sofá, apoiei a minha perna direita na sua, larguei o seu olhar.

            – Quando tens de fazer igual, tens de te esforçar, porque há toda uma linha a seguir, directivas e merdices… É um esforço, na verdade… O que dizer, o que não dizer, essas merdas todas. Quando encontras alguém diferente e te podes dar ao luxo de fazer diferente, tens muito mais espaço para agir… porque na verdade estás a inventar a tua própria estória à medida que a vives. Vale muito mais a pena, acho… – o seu olhar voltou para mim. Trocou o copo para a sua mão esquerda, libertando a direita, que subiu até ao meu queixo. Descreveu um semicirculo com o seu polegar do meu nariz até ao canto do meu maxilar, e puxou suavemente os meus lábios para os seus. Fechei os olhos e senti a minha barba arranhar simpaticamente a sua pele, a minha língua enrolar-se na sua. Senti o seu copo esbarrar-se lentamente no meu ao mesmo tempo que a sua boca deixou a minha.

            – A surpresas… – disse, coroando o brinde.

            O tempo desapareceu rapidamente depois deste nosso brindado beijo. Confundia já as razões das minhas tonturas, incapaz de perceber se se deviam ao álcool bebido ou aos profundos beijos que me dava. Fechava os olhos ao a beijar como nunca tinha feito com ninguém. Sempre me fora difícil o fazer… como se sempre tivesse de me obrigar a não desaparecer de mim, a não voar nem sonhar. Porém, com… ela… não conseguia agarrar-me à realidade, tinha de fechar os olhos e existir através dos beijos que me faziam voar, de querer mais, de fazer por ter mais.

            O relógio anunciava as três menos um quarto, mais ou menos, quando o calor que sentíamos se tornou demasiado. O bar esvaziava a olhos vistos, contrariamente ao nosso interior, que se enchia de emoções e sentimentos aparentemente desconhecidos.

            – Vamos? – perguntei, finalmente.

            – A esta hora está quase tudo a fechar… – respondeu.

            – Eu sei – disse, levantando-me e vestindo o meu casaco. Mais uma vez o seu olhar de menina perdida deu um ar da sua graça. Mais uma vez a tinha apanhado de surpresa, parecia. Caminhou atrás de mim, em silêncio.

            – Não sei o que estou a fazer… – disse, enquanto eu esticava o braço, chamando um black cab.

            – Por favor… não estragues tudo dizendo que nunca fizeste isto antes… – respondi, quem sabe arrogantemente. Vi-a voltar a ligar o seu ar sedutor.

            – Sim, imagino que já ouviste isso muitas vezes.

         – Já, e de cada vez finjo que acredito e tento não dar importância a essa estupidez.

         – Porque estupidez?

         – Porque para além de ser mentira, geralmente, na verdade não me interessa. Parto sempre do principio que algo é especial, não precisam de mo dizer. E o mais estranho é que quando me querem fazer ver que é especial, é quando eu percebo que não é… como uma chamada à realidade desnecessária. Para quê?

         – Espírito de auto-sabotagem? Derradeiro esforço de alguém se mostrar como pura e difícil?

         – De certeza… acho que a ultima opção acaba por ser a mais frequente resposta – disse, à medida que entrávamos no taxi.

            Não falámos durante a viagem. Ficou no seu canto, eu fiquei no meu. De soslaio a observava. Queria-a para sempre. Mas não o pediria, tampouco o exigiria. Quando pedimos o “para sempre” arriscamos o “agora mesmo”. O meu crasso erro, que nunca mudarei. Querer o “tudo” que sempre se manifesta impossível. Porquê? Será que tenho a necessidade de me sentir insatisfeito? O mais estúpido é que vivo tanto no presente quanto possível, todo eu sou os minutos e segundos que me percorrem, nada mais quero senão o que está a acontecer… Como posso então ser tão incongruente ao ponto de querer um eterno “agora mesmo”?

            Chegámos. Paguei as dez libras, saímos do taxi. Entrámos. O computador descansava em cima da mesa da sala, saindo do seu repouso para nos oferecer algumas notas de Nick Drake, o malogrado artista de voz de veludo, que teve o seu “agora mesmo” apenas durante vinte e seis anos.

            Vi-a tirar o seu casaco, as suas botas e sentar-se, sedutoramente, no sofá. O seu olhar era de alguém que não me pertencia nem nunca pertenceria. O seu olhar contava-me ter estado dentro da minha mente e ter percebido que a queria para sempre. O seu olhar dizia-me que tudo o que teria era aquela noite. Tirei uma garrafa de Vinho do Porto, servi a bebida em dois pequenos copos e estendi-lhe. Apenas por alguns segundos a sua bebida sobreviveu. Dum gole só, fez desaparecer o conteúdo do copo, que pousou ao lado do computador. Sem recolher o seu braço, agarrou-me pelos colarinhos e puxou-me para si. I could have been a sailor, could have been a cook; A real live lover, could have been a book – cantava-me Nick, com a mesma música em repetição. Mergulhei gentilmente no sofá, a seu lado, mergulhei, áspera e prazeirosamente, no seu ser. Rodou sob mim, levantou-se. Tirou a sua blusa, mostrando-me o seu soutien verde vivo, algo que, de certa forma, já tinha visto muitas vezes na mesma noite. I could have been your pillar, could have been your door; I could have stayed beside you, could have stayed for more. Libertei-me da minha t-shirt, desapertei o cinto. Aproximei-me de si e desapertei o seu. I could be even here; I would be, I should be so near… Fiz as suas calças de ganga deslizar e deliciei-me com a esperada combinação da cor de uma esmeralda qualquer. Sublime era algo que tinha à minha frente, inesquecível as linhas do seu corpo, que abraçava o meu. Levantei-me, dançámos um pouco, os dois em roupa interior. Deixávamos a musica suave nos embrutecer, lutávamos contra as pulsões de tornar o “agora mesmo” em algo que nunca desaparecesse. Lutávamos para adiar, apenas um pouco, o “agora mesmo” que não tínhamos planeado. Subi com a minha mão esquerda do fundo das suas costas até ao seu pescoço, agarrei, com a minha mão direita, a sua cocha esquerda que, lentamente, subiu a minha perna, prendendo-se o seu calcanhar atrás do meu joelho direito. Deitámo-nos. Raramente parámos de nos beijar. Tocávamo-nos já não discretamente, antecipando o nosso ponto de prazer, atrás das camadas de roupa desnecessárias que desapareceram no instante seguinte. Não havia barreiras. Sentia a sua respiração ofegante e descontrolada, como um leão em cativeiro perto de desaparecer no meio da selva. Via algumas gotas de suor surgirem entre as pequenas pregas de pele do seu pescoço. Bebia-as, deliciando-me com o sabor a pimenta, sal e vinho. Percorri a curta distância dos seus seios até ao seu calor, e deliciado deliciei-a por uns minutos. Via a sua batalha de querer os olhos abertos para me ver, e de os querer fechados para me sentir. O tempo afundava a minha alma, e não conseguia resistir mais. A whole long LIFEtime could have been the end…

 

            No dia seguinte acordei na minha cama. A minha cabeça queria explodir e as minhas memórias lutavam por um lugar ao sol. No entanto, estranhava como me lembrava de cada detalhe da noite anterior, pensando que desde há algum tempo andava a beber tanto que a minha VIDA depois das seis da tarde era um mistério para mim. Do que mais dificilmente me lembrava era de como tinha acordado na minha cama. Porém, com esforço me recordei do tempo que passámos a… fazer amor, da maneira como adormecemos a ouvir a mesmo música vezes sem conta, de como me acordou e me chamou para a cama, onde fomos até ao limite mais uma vez. Tinha algumas velas já sem VIDA e o computador no quarto que, imagino, trouxera. Tinha a ficha ligada, e ainda, quem sabe pela milionésima vez, tocava One of These Things First. Lembrava-me de como tinha falado de realidades alternativas e de futuros que poderíamos ter tido, fosse não sei o quê diferente. Lembrava-me de como lhe pedia para nada dizer, e lhe recordava o verso do Vinicius de Morais… “que seja infinito enquanto dure”… Lembrava-me um pouco de tudo, menos de onde ela estava, ou se ainda estava na casa. Levantei-me, acendi um cigarro, e percorri as restantes divisões, incomodado por não saber como a chamar. Nada. Voltei para o quarto, sentei-me na cama, mudei a musica. ACO – Machi. Dei uma passa do cigarro, que tinha acabado de largar alguma cinza para os lençóis cansados e avistei, mesmo à minha frente, um envelope branco. Fiquei nervoso, e por uns segundos não sentia dores de cabeça ou músculos doridos. Estendi o braço, peguei no envelope. Tinha escrito apenas: “Abre este envelope exactamente daqui a um mês. Sei que te vai ser difícil e não vais perceber, mas sei também que vais respeitar este desejo. Gweneviere”. Fiquei a olhar para o envelope durante umas duas ou três musicas, atónito.

            Gweneviere…

            Uma coisa era certa, ela tinha razão – eu não estava a perceber. Apetecia-me abrir o envelope, queimá-lo, comê-lo, tudo mas deixá-lo intacto e cínico. Todavia, também nisto tinha razão. Deixá-lo-ia intocado, e abri-lo-ia passado um mês. Claro que sim. A fome de romance e desespero que qualquer escritor tem encontrara o suficiente para sobreviver por um mês inteiro. Sabia que a cada dia que passasse cresceria em mim o desejo de saber mais, como se em cada dia trabalhasse um pouco para o meu próprio êxtase.

            No dia seguinte voltei ao Café Rouge. Não tinha esperança de a ver. Pelo menos profunda esperança. Há sempre aquela parte de nós, sonhadora, que pensa que, por uma vez, tudo pode correr como num conto de fadas. O mais engraçado é que um conto de fadas é algo que eu nunca quis, o que me deixa um pouco confuso. Sentei-me no mesmo sitio de sempre, liguei o computador, olhava para a rua. Ouvia Blue States, Allies, enquanto via as pessoas passar. Algo se tinha passado comigo, algo que não conseguia perceber exactamente. Não conseguia deixar de pensar em Gweneviere, nos detalhes da nossa noite, em como me tinha sentido e, especialmente, em como tão habilmente me sentia capaz de o descrever. Era como se cada momento e emoção dentro de mim fosse possível explicar num par de linhas atrevidas e inovadoras… Algo tinha mudado.

Quando a simpática empregada de mesa se abeirou de mim perguntou-me, com o olhar se eu queria o mesmo, mas… não queria. Pedi um cappuccino. Sai e fui fumar um cigarro enquanto me tentava estudar, analisar. Sorri com a minha incapacidade – não tinha mudado assim tanto, continuava a, em grande parte, ser um mistério para mim mesmo.

            Quando voltei a entrar, já me esperava a insólita bebida, que por sua vez algo de inédito presenciou. Viu-me sentar, abrir o computador, e escrever por seis horas a fio, parando para ir fumar ou para ir mijar. Ia escrevendo, dizendo em voz alta os finais das frases como sempre fiz, sorrindo e amando, vez por vez, o quão bem conseguia acertar com descrições ou diálogos. Gweneviere tinha-me inspirado de uma maneira que nunca sonhara. Pensando em si, na sua figura e no que me fizera ver e sentir, começei simplesmente por escrever sobre uma festa onde o meu personagem encontraria a donzela mais incrível e sedutora que alguma vez conhecera. Assim o fui fazendo nos dias seguintes. O que vivemos não tinha sido real, não tinha sido possível de acontecer num mundo normal, e por isso mesmo fiz a estória do meu romance desenrolar-se num pais inventado. Salty Bay, uma ilha nas Caraíbas com o Inglês e o holandês como línguas oficiais. O meu personagem era simplesmente alguém interessante o suficiente para saber o quão desinteressante a VIDA pode ser, e inteligente o suficiente para se deixar levar por estúpidas situações. Nem ele nem a sua musa sabiam o nome do outro, assim como passei a noite sem saber o seu nome, dai que tenham inventado os seus próprios nomes. Godelieve e Theodoor. Godelieve como o amor divino, o amor de deus, Theodoor como o próprio deus.

            A minha mente não deixava Gweneviere por um segundo. Sentia-me frustrado por saber que não a veria nunca mais, mas escolhia prestar mais atenção ao calor que me tinha oferecido, à noite inesquecível que nos tínhamos dado, e aos momentos de inspiração a que não conseguia resistir.

            Assim se passou esse mês. Por vezes penosa e custosamente, outras vezes rápida e discretamente. Ia para o Café Rouge todas as tardes dos dias da semana, pedia um cappuccino a cada duas horas e um ou dois whiskeys no final. Escrevia oito ou nove paginas por dia. Por vezes passava dias inteiros a rever coisas já escritas, outras vezes a inspiração apontava noutras direções e lançava-me em mais pequenas estórias.

            Era uma Segunda-Feira, dia seis de Abril de dois mil e nove. Um mês depois de si. Talvez inconscientemente o tenha feito de propósito, mas foi nesse mesmo dia que acabei o meu romance. O meu primeiro grande romance. Ate então tinha escrito muito. Sobretudo pequenas estórias, por vezes outras mais longas, mas esta era a primeira obra que sentia ter verdadeiramente a minha marca, que ficaria para sempre. A verdadeira obra pela qual tanto tinha esperado e que quase me tinha levado ao desespero.

O relógio anunciava as três e trinta e três da tarde quando, sentado na mesma cadeira de sempre, escrevi a última frase… “De tudo o que tive, nada foi, nem será, como aquilo que agora perdi.”.

            Não cabia em mim. Tinha um sorriso que quase me fazia sentir como um estranho para comigo mesmo, tão desabituado que estava de sorrir abertamente. Paguei o meu único cappuccino, e corri para casa. Quando cheguei, meia hora depois, abri uma garrafa de Macieira. Imprimi o livro, peguei na carta. Deixei-a em cima da mesa da sala, encostei-me para trás no sofá onde estivéramos juntos, deixei o computador a tocar Iron & Wine e li, com calma, as ultimas partes de “Godelieve” enquanto saboreava o brandy.

            Algumas horas, um quarto de garrafa e alguns cigarros depois, fechei o livro. Não sabia o que fazer. Tinha esperado tanto aquele momento que, apesar de me sentir notoriamente satisfeito e feliz, não sabia como agir. Talvez não ter ninguém com quem o celebrar me deixasse um pouco desiludido. As pessoas que conhecia estavam demasiado longe de mim, e a única pessoa que conhecera que valia a pena em Inglaterra fazia parte de um mundo completamente diferente. Contudo, nada me deixaria a sentir pena de mim próprio, era altura de me dar um pouco de descanso.

            Sentia, com o passar dos matreiros minutos, a minha adrenalina subir progressivamente. Via o desafiador envelope e o relógio, que apontava seis e meia, perguntar-me quanto tempo mais esperaria. Sentia-me entusiasmado, mas ao mesmo tempo com medo do que pudesse descobrir. Todo o tipo de possibilidades atravessavam o meu espírito, mas não queria nenhuma. Tentava afastar com deferência cada hipótese, para que tudo o que fosse descobrir representasse a mais pura surpresa. Era altura de o fazer. Peguei no envelope, abri, e tirei uma folha A4, escrita à mão.

            “Ola… querido (acho que te posso chamar assim, pois é a única oportunidade que vou ter de o fazer),

            Foste uma surpresa muito mais surpreendente do que alguma vez imaginei. Surpreendeste-me da primeira vez que te vi, mas quando te vi pela última vez, a falar sozinho, numa língua qualquer, no teu sono, na tua cama, continuaste surpreendente. Apetece-me amaldiçoar este destino que temos e como nos encontrámos, e como certas noites não podem durar para sempre… Ter-te-ei para sempre, de certa forma, pode-lo saber. Talvez seja suficiente. Bem, terá de o ser…

            Bem.

            Pediste-me para te explicar letra por letra o que se passou, e assim o farei. Quero apenas que saibas que nunca, nunca pensei que as coisas chegassem tão longe. Porém, vou atrever-me a dizer que nunca fiz nada assim, e desta vez, vindo de mim, neste momento, acho que vais acreditar…

 

            Conheci-te em Londres, na passagem de ano. Estávamos em Picadilly.Tu estavas sozinho, e eu estava com os meus amigos. Passavas pelo nosso grupo e paraste no meio da rua a olhar para mim. O que vi, sinceramente, foi mais um bêbedo, bêbedo demais para celebrar o novo ano em condições. Mas eis que permaneceste no mesmo lugar, minutos a fio, a olhar para mim, sem sequer te esforçares por disfarçar que não conseguias não olhar para mim. Quando um dos meus amigos se apercebeu, encheu-se de si e foi confrontar-te. Perguntou-te o que querias, disse-te para desapareceres, e respondeste que há varias formas silenciosas de prestar um elogio à mais bonita rapariga da noite. Esta tua saída fez-me sorrir, e aproximei-me, tentando apaziguar as coisas. Pediste desculpa e perguntaste onde íamos. Apesar de me ter sentido um pouco interessada, esse pouco era demasiado pouco para querer que viesses connosco. Contudo, ainda que te tenha afastado, seguiste-nos para o próximo bar. Só nos apercebemos que o tinhas feito quando já la estávamos, e mais uma vez o meu amigo foi confrontar-te, nitidamente chateado. Quando te perguntou se me estavas a seguir, disseste que não tinhas a certeza se seguias uma pessoa ou um sentimento. O quão bêbedo estavas e a tua cara de miúdo arrancou um sorriso ao meu amigo, e um convite meu para te juntares a nós.

            Eras apenas mais uma daquelas pessoas que se conhece numa noite, espontaneamente, e que tão cedo desaparecem como apareceram. Sentamo-nos e falamos por horas. A conversa desenrolava-se por caminhos assustadoramente fáceis. Havia algo de diferente entre nós, e acho que ambos o sabíamos. Contaste-me algo que, disseste, não tinhas contado nunca a ninguém. Contaste-me como vivias em desespero por saber tudo o que podias fazer, ou escrever, e como te sentias como se te tivessem cortado as mãos. Falavas com amargura e um olhar vazio. Contaste-me como te tinhas dado um tempo, mais ou menos definido, mais ou menos indefinido, para criares algo verdadeiramente sublime, ou caso contrario… não sabias o que podia acontecer. Ia duvidando se o que me dizias era verdade, mas as tuas palavras eram perras mas fluidas, distantes, mas tocantes. Sentia como verdadeira a tua dor, e perguntei o que era que precisavas. Definiste-te como uma planta com muito para dar e ser, mas sem luz, sem sol, sem água nem nada que te pudesse ajudar a crescer. Precisavas de algo, de alguém. Alguém que te relembrasse do brilho que as pessoas e as relações podem ter. Disseste que sabias que não existia ninguém que pudesse alguma vez mostrar-te tudo aquilo que querias ver, mas que te contentarias com uma mentira que te ajudasse a poder falar das coisas que não existem. Foi mais ou menos nesta altura que disseste que eu poderia ser essa pessoa. O meu ego teve um papel importante nisto tudo, admito… Estava fascinada com o que dizias, e em como o dizias, e ouvir-te dizer que eu poderia ser alguém que te ajudaria a criar algo como uma bela obra deixava-me a sentir… especial. Mas claro…não te conhecia. Mas claro, eu estava já lançada em champanhe e Baileys, e disse que sim, oferecendo-me para te ajudar, para ser a faísca de que precisavas. Parte de mim sabia que nunca o faria, e que eram apenas devaneios de um bêbedo para o outro. Explicaste-me então como passavas todas as tarde no Café Rouge em New Street, Birmingham, à espera de algo que te fizesse escrever. Explicaste-me como eu deveria lá aparecer, uma qualquer tarde, e ser apenas eu própria, e deixar as coisas seguirem o seu rumo. Quando te perguntei que se passaria quando me reconhecesses, disseste que agirias como se nunca me tivesses visto, ou então, e mais provavelmente, não te lembrarias de todo de mim, pois tinhas bebido uma garrafa de vodka na mesma noite. Foi aqui que me pediste para, seu eu percebesse que não me tinhas reconhecido, te deixar esta carta. Escusado seria dizer que senti isto como um pouco ofensivo. Afinal, se eu era tão especial como me dizias, como me poderias esquecer? Contudo, concordei. Concordei naquela noite, claro, pois como disse, parte de mim sabia que a probabilidade de realmente o fazer era escassa, muito escassa. Eventualmente desapareceste, como tinha mais cedo previsto. Deixaste em mim a vontade de estar contigo mais uns momentos, mas desapareceste sem que eu me tenha apercebido, quando fui buscar uma bebida.

            Quando acordei no dia um de Janeiro, não sei a que horas, tinha-te ainda na minha mente. Ainda assim, apenas sorria com as promessas que tinha feito e que não poderia cumprir. Assim, fiz toda a minha rotina do costume, e quando me preparava para sair, encontrei no meu bolso um pedaço de papel, recortado de um maço de Marlboro, que dizia apenas: “Por favor, não te esqueças de mim.”. Curiosos, mas foi isso que fez com que, realmente, te lembrasse mais do que tinha imaginado. Deixei o papel na minha secretaria, o mesmo sitio onde esteve semanas a fio, talvez apenas à espera de uma decisão minha.

 

            Passou Janeiro, passou Fevereiro. Estava sentada frente ao meu computador a pensar que ainda tinha alguns dias de férias para tirar até ao fim de Março, e que vi? O teu recado, que envelhecia lentamente, gosto de pensar triste por não me ter visto ainda partir. Foi-me difícil tomar a decisão de me aventurar e ir para Birmingham sozinha. Não que fosse longe ou assustador, mas a simples e provável hipótese de não te ver  tornava o cenário como chato e aborrecido. Daí que tenha contactado alguns amigos de Birmingham, dois ou três dos quais mal conhecia. Achei que, caso te recordasses de mim, te confundiria, caso não te recordasses, te intrigaria. Deixei o meu carro estacionado no Bull Ring, e tenho de te dizer que, ao subir New Street, há não sei quantas horas atrás, sentia-me profundamente nervosa. Quando vi, ao fundo, as janelas vermelhas do Café Rouge, parei para fumei um cigarro. Estarias lá? Tanto que poderia acontecer… poderias simplesmente ter mentido, poderias ter decidido não ir nesse dia, sei lá, tanto quanto eu sabia poderias até ter-te suicidado…

 

            Acabei o cigarro, e dirigi-me para o Café. Ainda antes de entrar, vi-te, sentado perto da janela, com o computador preto aberto e uma garrafa de vinho a abrir o caminho para a bebedeira que, agora sei, apanhaste. Foi neste momento, quando te vi, que se deu um reboliço dentro de mim. Deixei de me sentir nervosa e, num processo que não percebi muito bem, tornei-me em alguém cheia de autoconfiança e criatividade. Quando me sentei reparei instantaneamente que reparaste em mim. Tentei, sem perceberes, perceber se te lembravas de mim ou não. Trocámos um olhar, em que me colei mais tempo do que desejaria. Pensei de imediato se tinha deitado tudo a perder…

            Quando os meus amigos chegaram, adorei a tua expressão. Se calhar reparei porque sabia o que procurar, mas a tua cara de espanto foi algo difícil de esquecer. Estava a divertir-me com aquele jogo, e mal sabia eu onde ia parar…

 

            Quando falaste comigo, pensei que te lembravas de mim, por teres tido a iniciativa de o fazer. Mas, quando te respondi, vi no teu olhar, preso no meu, que não fazias a mínima ideia do nosso primeiro momento. Adorei. Adorei a sensação de poder que tinha sobre nós, e adorava a noite que adivinhava. Mais uma vez digo, a noite acabou muito mais tarde do que alguma vez antecipara…

            Adorei tudo o que fizemos, tudo o que nos dissemos. Ouvia-me falar com uma eloquência que desconhecia ter. Não estava também preparada para os jogos que jogámos, tampouco preparada para me sentir tão atraída por ti. A maneira como me falavas deixou-me completamente à vontade. Senti que, se fosse genuína, nada do que pudesse dizer ia estar errado. A maneira como improvisámos um com o outro foi algo que nunca tive com ninguém, e algo que duvido voltar a ter. Confesso, foi por isso que me deixei ir… Não tinha planeado sequer beijar-te, muito menos dormir contigo. Queria apenas suscitar interesse em ti, desafiar-te, e desaparecer sem dares por isso. Era esse, mais ou menos, o plano. Mas… a tua presença era demasiado forte e agarrou-me com uma habilidade estranha. Não consegui.

 

            Engraçado. Não sei o teu nome.

            Engraçado… reparei agora que me entretive a escrever esta carta mais do que devia. Isto é, contei-te tudo ao pormenor… Talvez tenha sido a última tentativa de não partir. Quanto mais tempo demorasse a escrevê-la, mais probabilidade haveria de acordares e me surpreenderes. Nada feito, continuas a dormir.

            Vou-me embora. Não quero ir, mas tenho de ir. Se alguma vez mais te encontrar, ficarei contigo. Mas apenas nos permitirei que tal aconteça se o destino, ou o que for, assim o decidir. Caso contrário, se decidir ficar, a efemeridade do que vivemos, mais do que uma irrealidade, passa a ser uma mentira.

 

            Beijo, Gweneviere.”

 

            De tudo o que tive, nada foi, nem será, como aquilo que agora perdi.

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