Textos

A Atravessar a Mauritânia

Estou a adorar atravessar a Mauritânia! Tem as suas desvantagens, como serem parcos em hospitalidade, ao contrário do que pensava, e acontecer vezes demais alguém pedir-nos preços mais elevados porque somos estrangeiros, ou pedir preços simplesmente, para cenas que podem ser gratuitas. Ainda assim, ontem dei por mim. Dei por mim, simplesmente.

“Pessoal… isto é bastante louco… estar aqui… Nós habituamo-nos e nem damos por isso, como quando estávamos noutro dia em casa do amigo do nosso taxista em Terjit e eu disse que, no início, não resistiríamos a tirar umas fotos, mas agora parece normal. Mas a verdade é que isto não é nada normal!” comentei, com o Dany e a Justine. Tínhamos deixado Nouadhibou nessa manhã, antes das oito. Pedalámos oitenta quilómetros com algum custo, com o Vento a não ajudar e com as pernas já desabituadas, até pararmos numa aldeia chamada Bulanoir. O Will ficou num hotel que pareceu caro a mim, ao Dany e à Justine, e fomos perguntar a um méne se podíamos dormir numa barraca que fazia de restaurante. O rapaz começou por pedir quinze euros para os três. Baixou para dez, a dizer que o patrão não o deixava baixar mais. Agradecemos e íamos à nossa VIDA quando, de repente, baixou para sete euros e meio para os três.

Depois de um par de horas cá fora na conversa enquanto o Dany arranjava um raio da roda de trás que tinha partido, fomos para dentro antes do sol se pôr. Lá estavam duas mauritanas-pretas muito bonitas e a Justine comentou que o homem com quem tínhamos negociado tentava aproveitar-se delas, tocando aqui ou ali, e oferecendo algumas ouguyias, sabe-la lá para quê. Estas miúdas, cobertas com uns longos lenços coloridos, iam entrando e saindo, cozinhando, entre outros afazeres. Outros foram chegando, como um senhor com a vestimenta sarauí que nos ia passando chás com simpatia. Outro rapaz apareceu, este vindo da Costa do Marfim, bem como uma velhota, a primeira mulher que vi por estes lados a fumar.

E com tudo isto… sentado no chão num canto com o Dany e a Justine à volta de uma tigela de massa que comíamos com as mãos, com aquele pessoal à nossa volta, dentro de uma barraca de madeira com várias frestas para o exterior, numa aldeia p’rai com vinte ou trinta casas no deserto, a caminho de Nouakchott, apercebime que uma situação daquelas, para alguém como eu, não era nada normal. Estava ali, longe de casa e longe, muito longe, de pessoas que gostam e querem as mesmas coisas que eu, de certa forma. Estava a improvisar a cada segundo, fosse para comer ou para dormir, e isso arrebatou-me, posso dizer. Gosto de parar um bocado e ver estas realidades. Gosto de me sentir bem onde estou, mas não gosto necessariamente de me sentir em casa. Gosto de me sentir o tão longe de casa quanto possível quando me aventuro mundo fora. Porque para me sentir em casa… Dormi a noite toda de uma só vez, e acordei com o homem do chá a ligar o rádio, de onde se ouvia alguém cantar em honra de Alá, eram sete da manhã, a hora a que tínhamos planeado acordar.

Estava um friito fixe, que desapareceu num ápice. Foi um dia duro. Senti-me melhor quando o Dany disse que estava cansado, pois percebi que não era só eu. E, de repente, lá vou eu naquela linha de raciocínio. É preciso ser um egoísta de primeira para me sentir melhor porque não sou o único que está cansado! Que parvoíce! Eu devia era querer que todo o mundo se sentisse bem e só eu estivesse cansado. É deste tipo de egoísmo que me quero livrar. Não creio que influencie muito a minha VIDA, pois sei que, se tivesse escolha, obedeceria à lógica e não seguiria com esse sentimento – não quereria que os outros estivessem mal só porque eu estava mal. Mas, ainda assim, sinto-me mais pesado com este tipo de egoísmo…

Parámos por uns minutos para dar o passaporte à polícia, depois quando encontrámos o Will, que tinha partido mais cedo, parámos para almoçar. Quando saímos do restaurante, e depois de uma sesta de duas horas, o sol queimava a quarenta e quatro graus, pelo que foi um prazer ver, ao longe, umas casitas aparecerem onde poderíamos acabar a jornada. “Parece uma vila de carnaval” comentei, ao chegar. À nossa direita vi três casas com telhado em bico, como tendas de cimento, logo a seguir um edifício que me lembrava uma mesquita e, ao longo da estrada, a cada sete ou oito metros, por uns duzentos metros, uma barraca, também de telhado em bico, como se aqui chovesse muito.

O polícia que nos tinha dado mil e um conselhos à chegada, do tipo de conselhos que me faz dizer que sim, que sim, e pensar noutra coisa qualquer, encaminhounos para as tais tendas de cimento, custando cada uma sete euros e meio, fosse para uma pessoa ou para quatro, o que era excelente. Lá dentro havia colchões a toda a volta, e como tínhamos ainda alguma água, vertemo-la para um balde e tomámos banho lá atrás num quarto-de-banho, que não era mais do que quatro paredes de tijolos de cimento e um buraco no chão. “É o melhor desde há algum tempo…” De banho tomado, ficámos à conversa um bocado e jantámos do outro lado da rua. Um rapaz cozinhou uma massa para mim, para a Justine e para o Dany,
que comemos no alpendre, com o Vento a agitar suavemente os cabelos, entre conversas sobre filhos, quantos queremos ter, como…

E são cenas como estas que estou a adorar… Estas aldeias não apareceriam em nenhum guia, isso é certo, mas é isso que estou a curtir em viajar de bicicleta. Tenho de passar por elas, quer queira, quer não, e tenho de ficar nelas! Tenho de ser este gajo, provavelmente um dos poucos ocidentais que por aqui fica num ano! Tenho de encontrar um sítio podre para dormir, em sítios que muitas vezes não são para dormir! Tenho de jantar em restaurantes faz de conta! Se quiser tomar banho, tenho de pedir a alguém que me arranje alguma água que despejo dum balde! Tenho de fazer mil coisas que nunca faria, e adoro isso! Adoro sair dos meus costumes e, de repente, confundir-me com novas maneiras de fazer as coisas. Sinto-me, de certa forma, especial, por estar aqui. E não sei se esse sentimento de especialidade se prende com, mais uma vez, algum ego de saber que devo ser das poucas pessoas que fica em lugares como este, ou se com o facto de me sentir feliz e isso, em si, me atribuir esse tal sentimento de especialidade. Sinto-me privilegiado.

Agora vejo o Will sentado na soleira da porta do nosso “hotel” a acabar o seu último cigarro do dia. O Dany a dormir de barriga para baixo à minha direita, e a Justine encostada à parede a escrever qualquer coisa no seu caderno. Está calor cá dentro. Estou bem, estou feliz.

21h44, 6ª, 11 de Abril de 2014
a caminho de Nouakchott

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